Publicado 30/04/2023 01:00
Ao receber das mãos do presidente do presidente do Superior Tribunal Eleitoral, Alexandre de Moraes, na terça-feira da semana passada, um conjunto de sugestões destinadas a endurecer ainda mais o Projeto de Lei 2630/2020 — conhecido como projeto das Fake News ou, como parece mais apropriado, PL da Censura —, tanto o senador Rodrigo Pacheco quanto o deputado Arthur Lira perderam uma ótima oportunidade de reafirmar a força e a independência do Congresso Nacional. Ao contrário disso, Pacheco, que preside o Senado, e Lyra, que comanda a Câmara dos Deputados, agiram como se seguissem uma agenda que não reflete o interesse do poder que representam. A impressão que deixaram foi a de que, de cabeça baixa e em nome da pressão de um outro poder, aceitaram trabalhar para suprimir o direito à livre expressão no Brasil.
Não importa se a justificativa para a supressão desse direito seja proteger as instituições dos “atos antidemocráticos” supostamente praticados em nome dos interesses do ex-presidente da República Jair Bolsonaro. O que não faz sentido é que, num regime que pressupõe a alternância no poder, uma parcela da sociedade — seja ela qual for — perca seu direito de se manifestar em nome do direito de outra parcela falar o que quiser e impor sem debate sua versão sobre os fatos.
Ninguém aqui está dizendo que os atos do dia 8 de janeiro devam ficar impunes. Pelo contrário! Tomar as atitudes previstas em lei para coibir manifestações que ultrapassem os limites aceitos pelo Estado Democrático de Direito (sejam elas levadas adiante por agitadores bolsonaristas, por militantes do MST ou por quem quer que seja) é uma obrigação das autoridades de qualquer um dos três poderes. Mas ultrapassar esses mesmos limites em nome da intenção de impedir que outros o ultrapassem é um erro de grande magnitude.
Pacheco e Lyra poderiam ter deixado claro que, numa democracia, os poderes, além de independentes, têm atribuições específicas. Um não pode avançar sobre o espaço dos demais, sob o risco de acabar com a harmonia que deve existir entre eles. Já pensou se amanhã ou depois algum deles procurasse Moraes para “sugerir” a sentença sobre uma ação em julgamento? Na divisão de tarefas que a democracia prevê para os poderes, a atribuição de legislar cabe ao Parlamento — jamais ao Poder Judiciário.
CARÁTER DE URGÊNCIA
CARÁTER DE URGÊNCIA
Outro ponto a ser observado diz respeito à tramitação do projeto das Fake News ou da Censura. O PL 2630/2020 — com todos os seus equívocos e eventuais acertos — nasceu no Senado no dia 13 de maio de 2020. Foi apresentado pelo senador Alessandro Vieira, um policial civil que conquistou o mandato de senador pelo estado de Sergipe. Eleito pelo Cidadania, Vieira está hoje no PSDB.
Consequência do acirramento das posições que têm dominado a política brasileira nos últimos anos, o projeto andou algum tempo adormecido, mas de uma hora para outra voltou ao centro do debate. O que o trouxe de volta foi a divulgação das imagens do general G. Dias dispensando aos arruaceiros que invadiram o Palácio do Planalto no dia 8 de outubro um tratamento para lá de cordial.
Desde então, e com a iminência da instalação de uma CPMI que certamente revolverá o assunto, acirrará os ânimos dos partidários de um lado e do outro e deixará a situação e a oposição com os nervos à flor da pele, o projeto se tornou uma prioridade. Será que essa pressa repentina não tem a ver com a intenção de impedir que o debate em torno da questão não seja travado com liberdade e em condições iguais para os dois lados? Senão, vejamos:
Aprovado na casa de origem, ou seja, o Senado, em junho de 2020, o projeto chegou à Câmara dos Deputados no dia 3 de junho daquele ano e lá ficou adormecido. Depois da divulgação dos vídeos em que G. Dias aparece guiando os invasores pelos corredores do Palácio do Planalto, passou a ser tratado pelo governo e seus partidários como uma questão de vida ou morte. Encarregado da relatoria, o deputado Orlando Silva (PCdoB/SP), de uma hora para outra, começou a trabalhar com uma celeridade que ainda não havia demonstrado. Foi dele o requerimento que, na terça-feira passada, exatos 1026 depois que o projeto, devidamente aprovado pelo Senado, iniciou sua tramitação na Câmara, foi posto em votação por Arthur Lyra.
Foi nesse ambiente que Pacheco e Lyra se comprometeram a “analisar” as “sugestões” apresentadas por Moraes e, quem sabe, incluí-las no projeto que estabelece restrição a uma cláusula sensível da Constituição. A Carta de 1988, em seu artigo 5º, garante a todo cidadão o direito à livre expressão de suas ideias. Pelo que se sabe até agora, o projeto, que certamente será aprovado, dará a funcionários do Executivo e do Judiciário o poder de decidir quem tem e quem não tem direito de expressar suas opiniões nas redes sociais. Mais do que isso, dará a esses “censores” o direito de definir o que pode e o que não pode ser dito nesses meios de divulgação.
O problema está justamente aí. Ao invés de propor a criação de dispositivos capazes de ampliar as garantias à livre manifestação e circulação de informações e de ideias, os presidentes das duas casas do Congresso aceitam delegar a “censores” o poder de decidir o que será e o que não será visto pelas pessoas.
Antes de entrar nos detalhes do projeto, convém refrescar a memória em relação a fatos históricos que jamais deveriam ser esquecidos pela sociedade. Toda vez que alguém delega a uma autoridade poder para decidir sobre as informações que chegarão à sociedade, o cidadão que acredita na democracia tem a obrigação de recordar o temor manifestado pelo então vice-presidente da República Pedro Aleixo no momento em que se opôs à decretação do Ato Institucional nº 5, na tarde de 13 de maio de 1968.
Antes de entrar nos detalhes do projeto, convém refrescar a memória em relação a fatos históricos que jamais deveriam ser esquecidos pela sociedade. Toda vez que alguém delega a uma autoridade poder para decidir sobre as informações que chegarão à sociedade, o cidadão que acredita na democracia tem a obrigação de recordar o temor manifestado pelo então vice-presidente da República Pedro Aleixo no momento em que se opôs à decretação do Ato Institucional nº 5, na tarde de 13 de maio de 1968.
Perguntado por um auxiliar do marechal Arthur da Costa e Silva se ele não confiava nos critérios do presidente da República para aplicar as medidas draconianas previstas no Ato, Aleixo respondeu: “no presidente eu confio; mas tenho medo do guarda da esquina”. Aleixo não tinha o menor poder de resistir à decretação do documento que empurrou o Brasil para o momento mais sombrio de sua história. Mesmo assim, não alienou sua consciência nem compactuou com a decisão de aprofundar ainda mais a ditadura militar. Sua atitude foi oposta à que se vê hoje em dia, quando as autoridades com algum poder de livrar as redes sociais ao jugo dos “guardas da esquina” parecem fazer tudo para restringir o direito à livre expressão de suas ideias.
DECISÕES RIDÍCULAS
DECISÕES RIDÍCULAS
As decisões tomadas pelos censores no tempo da ditadura (algumas delas podem ser vistas do no site https://documentosrevelados.com.br) mostram o risco que a sociedade corre quando um grupo de burocratas tem o poder de decidir o que pode e o que não pode ser mostrado. Algumas das decisões tomadas naquele momento foram tão ridículas que hoje despertam risos — quando na verdade, deveriam despertar a indignação eterna de qualquer cidadão.
No ano de 1974, por exemplo, uma censora chamada Joselita Viana e Silva vetou a divulgação de cinco sambas do compositor paulista Adoniram Barbosa. Entre elas encontram-se algumas obras que, depois do fim da censura, nos anos 1980, acabariam se tornando grandes sucessos. São os casos das bem-humoradas 'Tiro ao Álvaro', 'Samba no Bixiga' e 'Casamento do Moacir'.
Mais espantosas do que a decisão de vetar músicas que nem de longe representavam qualquer ameaça a quem quer que fosse são os motivos que levaram dona Joselita a censurá-las. “O péssimo gosto impede a liberação da letra”, despachou a autoridade, em caligrafia esmerada, no parecer que impediu a divulgação do samba 'Casamento do Moacir'. Mais subjetivo do que isso, impossível.
O caso não é único e fica difícil saber, entre tantas decisões sem pé nem cabeça tomadas naqueles anos, qual é a mais ridícula. Em 1973, o Padre Zezinho — que já participou de especiais de Roberto Carlos e concorreu ao Grammy Latino em 2010 — foi proibido pela censura de organizar uma romaria ecológica a Foz do Iguaçu. Falar em meio ambiente naquela época era considerado subversivo. Outra: a exibição do espetáculo 'Romeu e Julieta' pelo balé Bolshoi, de Moscou, foi proibida em 1976 em nome de receio de que os bailarinos russos, simplesmente pelo fato de serem russos, transformassem a coreografia em torno da tragédia de Willian Shakespeare em propaganda comunista. Há centenas de exemplos grotescos e ridículos que hoje parecem engraçados. Mas que, como já foi dito, merecem o repúdio de toda sociedade. A conclusão diante desses casos é que os responsáveis por leis autoritárias costumam ultrapassar os limites da própria competência e tomar decisões muito além das próprias atribuições.
Pois bem. Diante de tudo isso, a decisão de impor restrições à divulgação de conteúdos pelas redes sociais deve ser recebida com o mesmo temor de Pedro Aleixo. Ninguém deve esquecer que o AI-5, o mais draconiano diploma legal que já vigorou no Brasil, foi baixado em nome de uma intenção que parecia legítima aos senhores que a tomaram. A justificativa do ato foi a de “dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema político, assegurasse autêntica ordem democrática baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana” etc, etc, etc. Ou seja, as pessoas que mais atentaram contra a democracia no Brasil diziam agir em defesa dessa mesma democracia.
“ME ENGANA QUE EU GOSTO”
“ME ENGANA QUE EU GOSTO”
O relatório de Orlando Silva dá aos políticos direitos que nega aos cidadãos — o que, por si só, é um despropósito. O deputado resguarda para os eleitos para o Executivo e para o Parlamento a imunidade em relação a qualquer opinião emitida por eles nas redes sociais. Os cidadãos comuns, no entanto, poderão sofrer sanções e ter os conteúdos postados removidos sem direito a apelação pelo primeiro censor que se sentir incomodado pela postagem.
Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá pedir a abertura de investigação na Justiça Eleitoral para apurar uso indevido de meios de comunicação social em benefício de algum candidato ou partido. “A equiparação das plataformas digitais e dos meios de comunicação serve apenas e tão somente para que a eficácia da Justiça eleitoral se dê plenamente quando houver abuso na atividade nesses espaços”, garante Orlando Silva. Será?
Outros argumentos “nobres”, no melhor estilo “me engana que eu gosto” surgem em meio às explicações dadas por Silva para justificar seu relatório. A maioria das medidas propostas, no entanto, abre espaço para que o “guarda da esquina” temido por Pedro Aleixo interprete a questão de acordo com os mesmos critérios que a censora Joselita utilizou para vetar sambas do grande Adoniran. Ou seja, sua preferência pessoal.
O texto obriga as empresas provedoras de serviços de internet a criar mecanismos para remoção imediata dos conteúdos e a elaborar relatórios semestrais sobre as principais ações tomadas no período. Tudo isso porque, nas palavras do relator, “havia o temor de que determinadas informações publicadas poderiam facilitar a vida de agentes maliciosos”. Mais subjetivo, impossível.
O texto obriga as empresas provedoras de serviços de internet a criar mecanismos para remoção imediata dos conteúdos e a elaborar relatórios semestrais sobre as principais ações tomadas no período. Tudo isso porque, nas palavras do relator, “havia o temor de que determinadas informações publicadas poderiam facilitar a vida de agentes maliciosos”. Mais subjetivo, impossível.
O texto também traz pegadinhas que só enganam àqueles que, a exemplo do personagem Cândido, de Voltaire, estão dispostos a ver o mundo com o olhar generoso dos ingênuos. Para dar a impressão de preocupação com os direitos dos cidadãos, Silva tem vinculado o projeto em tramitação a um outro, que propõe a criação de uma espécie de agência reguladora com o nome de Autoridade Nacional de Proteção de Dados. O conselho teria um total de 21 integrantes — sendo cinco representantes do Poder Executivo, três da sociedade civil, três de instituições científicas, três do setor produtivo, um do Senado, um da Câmara dos Deputados, um do Conselho Nacional do Ministério Público, um do Conselho gestor da Internet, um de empresário e um de trabalhadores.
Até aí, tudo bem. Fica difícil, porém, acreditar na independência de um órgão como esse num momento em que o próprio governo, por meio de manobras destinadas a garantir a aprovação da Emenda 54, do deputado cearense Danilo Forte (União), quer acabar com a independência das agências reguladoras existentes e transferir suas atribuições para conselhos comandados pelo Poder Executivo. É bom, portanto, abrir os olhos. Nesse jogo perigoso que está sendo jogado no Brasil, alguns dos que batem no peito e falam alto em defesa da democracia podem estar entre aqueles que a mantém sob ameaça. Todo cuidado é pouco.
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