Publicado 21/05/2023 01:00
Se insistir no caminho que vem trilhando desde o início de seu terceiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com a ajuda de alguns de seus auxiliares mais próximos, acabará oferecendo à oposição, numa bandeja de prata, algo que ela parecia ter perdido para sempre depois das eleições de 2022 e, principalmente, dos atos do dia 8 de janeiro. Isso mesmo! Se a direita mostrar força mais uma vez e, de repente, voltar a encher a Atlântica e outras avenidas do país com suas bandeiras nacionais e suas camisas da Seleção Brasileira, será mais por reação às atitudes do governo do que pela capacidade de articulação dos bolsonaristas e aliados.
Mesmo com a votação expressiva que Jair Bolsonaro recebeu na situação de “empate técnico” com Lula nas eleições do ano passado, a direita parecia acuada, sem força e sem argumentos para se contrapor ao novo governo. A posse do presidente, no dia 1º de janeiro, sob a promessa de fazer um governo orientado pelo amor e destinado a promover a união de todos os brasileiros, e, uma semana depois, a baderna levada adiante pelos desmiolados que invadiram as sedes dos três poderes, em Brasília, pareciam ter o efeito de uma pá de cal atirada sobre qualquer plano que a oposição pudesse alimentar de mostrar sua cara nas ruas.
E tudo permaneceria assim se o governo realmente tivesse cumprido a promessa de olhar para os interesses de toda a sociedade — e não apenas de seus aliados. Acontece, porém, que as ações adotadas por Lula, por seus ministros mais próximos e até mesmo por magistrados que parecem se guiar pela mesma cartilha do governo, parecem estar surtindo um efeito oposto ao que se pretendia alcançar com elas. Tiros disparados com o objetivo de deixar a oposição de joelhos — e de acabar com todo e qualquer vestígio das mudanças que houve no país desde o impeachment de Dilma Rousseff — estão saindo pela culatra e devolvendo a oposição a disposição para voltar para a raia.
É preciso cuidado para analisar esse cenário — mas, pelo que se vê até aqui, a oposição está ganhando força em cima dos equívocos do governo. Algumas das medidas anunciadas por Lula e por seus auxiliares, parecem destinadas apenas a querer eliminar algumas normas que tinham as digitais de Bolsonaro e, também, de seu antecessor Michel Temer. Ainda que algumas dessas normas merecessem ser revistas e aperfeiçoadas, o governo agiu como se estivesse interessado apenas no revanchismo e desejasse acabar com as políticas que havia antes. Essa postura, sem dúvida, foi vista como uma provocação e ajudou a eriçar os ânimos da oposição.
O governo acertou, por exemplo, ao propor o fim da política de teto de gastos, ao sugerir a necessidade de adotar um novo modelo de cálculo para o reajuste de combustíveis ou ao buscar um novo modelo para as concessões e de Parcerias Público Privadas. O problema é que, no meio das mudanças propostas, apareceram medidas destinadas a eliminar alguns mecanismos legais que limitavam as ações do Executivo e as exigências de transparência típicas da democracia — demonstrando a intenção de fazer o país retroceder ao tempo em que o governo fazia o que bem entendia sem ter que prestar contas de suas ações para quem quer que seja.
MANIPULAÇÃO E APADRINHAMENTO
MANIPULAÇÃO E APADRINHAMENTO
O resumo da ópera é que, em muitos casos, o governo pecou por falta de habilidade política e de clareza de intenções. E deu à oposição o que ela parecia ter perdido de vez por todas: motivos para reagir. E esses motivos invariavelmente mostram que, por trás de medidas tomadas com a justificativa de corrigir alguma rota equivocada, sempre havia a intenção de se obter alguma vantagem suspeita. Vamos aos exemplos.
O novo sistema de cálculo do preço dos combustíveis é o primeiro deles. O modelo anterior se baseava na cotação do petróleo e tornava obrigatório o reajuste da gasolina, do diesel e do gás de cozinha a cada alteração no preço do barril no mercado internacional. Isso era um erro! Como grande produtor de petróleo, o país não tinha razões para orientar sua política de preços apenas por esse critério. Era preciso incluir outras variáveis no cálculo do preço dos combustíveis nas refinarias.
O novo sistema de cálculo do preço dos combustíveis é o primeiro deles. O modelo anterior se baseava na cotação do petróleo e tornava obrigatório o reajuste da gasolina, do diesel e do gás de cozinha a cada alteração no preço do barril no mercado internacional. Isso era um erro! Como grande produtor de petróleo, o país não tinha razões para orientar sua política de preços apenas por esse critério. Era preciso incluir outras variáveis no cálculo do preço dos combustíveis nas refinarias.
A questão é que, para substituir o que precisava mesmo ser mudado, o governo adotou um conjunto de normas vagas, incompreensíveis e obscuras. Na prática, elas parecem abrir espaço a mesma manipulação de preços que, para tentar manter a popularidade do governo, quase levou a Petrobras à falência pelas mãos de Dilma Rousseff.
Outras alterações propostas em outras áreas levantaram suspeitas igualmente sérias. Nesta semana o Congresso apreciará, em regime de urgência, o Arcabouço Fiscal proposto para substituir o chamado Teto de Gastos (que já tinha cumprido seu papel e, nos últimos anos, vinha criando mais problemas do que soluções para o país). O problema é que o sistema proposto para substituir o teto traz embutida uma armadilha perigosa para o controle das contas do governo.
Ele, na prática, elimina o dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal que pune com o impeachment o político que gastar mais do que o valor previsto no orçamento. Ao contrário de Dilma, que pagou com a perda do mandato as pedaladas fiscais que deu para fechar as contas de seu governo, Lula estaria obrigado, caso o dispositivo seja transformado em lei e ele ultrapasse as metas de gastos, apenas a escrever uma carta se desculpando pelo estouro nas contas...
A lista de providências que parecem destinadas a fazer o país caminhar em direção a seu passado de descontrole e mau uso sistemático do dinheiro público não para por aí — mas, felizmente, nem todas as tentativas do governo de manipular a situação em seu próprio benefício têm dado certo. Dias atrás, como já foi dito neste espaço no domingo passado, a oposição impediu o governo de mudar por decreto alguns dispositivos do Marco Regulatório do Saneamento e, assim, favorecer as estatais ineficientes que travam o avanço do setor em estados como Bahia e Rio Grande do Norte.
Outra media de interesse do governo que fracassou no Congresso foi a tentativa de controlar as Agências Reguladoras federais. O Planalto tinha recebido com muita simpatia uma proposta com esse objetivo apresentada pelo deputado Danilo Forte (União Brasil/CE). Forte tentou pegar carona na Medida Provisória 1154/2023, que altera a estrutura da Esplanada dos Ministérios, para acabar com os poderes das Agências Reguladoras e permitir que o executivo interviesse como bem entendesse nos mercados de energia elétrica, saneamento, transportes, telecomunicações e uma série de serviços públicos que, nos últimos anos, foram ou vêm sendo assumidos pela iniciativa privada.
Se a emenda prosperasse, o retrocesso regulatório seria monstruoso — e o país voltaria ao tempo em que a manipulação e o apadrinhamento político tornavam o acesso da população a alguns serviços públicos ainda mais precário do que é hoje. A resistência foi grande e na semana passada, talvez para não impor uma nova derrota ao governo, o relator da matéria, deputado Isnaldo Bulhões Jr. (MDB/AL), deixar claro que a MP 1154 irá à votação sem o penduricalho que transferia para o Executivo a autoridade das agências reguladoras.
AMBIENTE HOSTIL
AMBIENTE HOSTIL
A defesa do Marco do Saneamento ou da autonomia das agências reguladoras não são, evidentemente, bandeiras exclusivas da direita. Mas, por terem sofrido ataques de um governo de esquerda, como é o de Lula, passaram a engrossar o repertório de argumentos que têm estimulado as ações da oposição no parlamento e inflamado o debate na sociedade. O fato é que o apetite exagerado do governo em eliminar os mecanismos que a democracia criou para manter as ações do Executivo dentro de parâmetros controláveis e transparentes tem estimulado o surgimento, por enquanto apenas no Legislativo, de um ambiente que parecia impossível cinco meses atrás.
Antes de o governo completar seis meses no poder, o Congresso Nacional — que tem por tradição sempre dizer sim a tudo que um governo novo se propõe a fazer em seu primeiro ano de mandato — vem reagindo e se recusando a aceitar medidas que parecem destinadas a dar ao Planalto mais poderes do que ele já tem. E a cada dia que passa surge um novo ingrediente para mostrar que o ambiente, que já não é dos mais tranquilos, tende a se tornar ainda mais aquecido nos próximos meses.
Os sinais estão por toda parte. Nunca antes na história deste país o Congresso instalou tantas Comissões Parlamentares de Inquérito simultâneas. Na melhor das hipóteses, elas dividirão as atenções e criarão obstáculos para a tramitação mais acelerada das medidas que o governo terá que adotar para cumprir os compromissos que assumiu na campanha eleitoral.
Além da Comissão Mista que investigará os atos do dia 8 de janeiro, outras três foram instaladas na semana passada. Entre elas, a mais incômoda para o Planalto é a que investigará a tomada de terras e a depredação de propriedades rurais pelos invasores do MST — movimento que conta com apoio, simpatia, verbas e até mesmo com vários cargos no governo federal.
Ao contrário do que aconteceu com a comissão destinada a investigar as arruaças do dia 8 de janeiro, em que o governo conseguiu instalar parlamentes leais nos principais cargos e, com isso, tentar manter as investigações distantes dos indícios desconfortáveis de envolvimento de autoridades federais na facilitação dos atos, a do MST ficará nas mãos da oposição. O presidente será, para desgosto do governo, o deputado Tenente Coronel Zucco (Republicanos/RS). E o relator, para um desgosto ainda maior, o ex-ministro do Meio Ambiente do governo Bolsonaro, deputado Ricardo Salles (PL/SP).
CANGOTE BAIXO
CANGOTE BAIXO
Ainda é cedo para prever as consequências dessas comissões e ninguém pode dizer quem ganhará ou quem perderá com elas. O certo é que a incapacidade de resistir à instalação de duas comissões que revolverão temas incômodos já pode ser vista como derrota do governo. Isso indica que a conversa, daqui por diante, se tornará mais difícil e seguirá um rumo diferente daquele que o governo pretendia. E Lula, que em seus dois primeiros mandatos se habituou a lidar com uma oposição de cangote baixo e sem qualquer desejo de reagir às suas medidas, parece ter sido pego de surpresa. E tem reagido a essa situação com atitudes que, com todo respeito, não fazem justiça à fama de político habilidoso e agregador que ele construiu ao longo da carreira.
Com exceção do Arcabouço Fiscal — que é de fato um projeto importante e, livre da tentativa de driblar a Lei de Responsabilidade Fiscal, pode trazer avanços importantes — tudo o que o governo fez até aqui foi gastar sua capacidade de negociação no Parlamento com a defesa de interesses menores, como o projeto que propõe a volta da censura. E, para levar seus propósitos adiante, tem abusado da generosidade na liberação de emendas parlamentares e no loteamento de cargos na administração federal. O problema é que, quanto mais o governo oferece, mais os “aliados” de ocasião demonstram apetite e querem mais.
Na semana passada, foi divulgado que, para abrir mais vagas para os apadrinhados de seus apoiadores na estrutura governamental, o governo pretende ampliar o número de superintendências da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) — uma empresa pública vinculada ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. A ideia é criar pelo menos duas novas Superintendências—uma em Belo Horizonte e outra em Recife...
Ainda não se sabe quanto a brincadeira custará — mas ninguém em Brasília se mostra preocupado com isso. O certo é que, para um governo que parecia ter na capacidade de articulação política um de seus pontos mais fortes, o que mais tem transparecido até aqui são ações marcadas pela improvisação e pelo amadorismo.
Ainda é cedo para prever se os desacertos demonstrados até aqui deixarão o governo imobilizado ou se Lula conseguirá tomar as rédeas da situação para, como prometeu, governar para todos e promover o desenvolvimento que o país necessita. O fato é que seu governo já existe há quase seis meses e não foi capaz de aprovar até aqui uma única medida estruturante e capaz de indicar uma mudança positiva na vida dos cidadãos.
Tomara, mas tomara mesmo, que Lula consiga se livrar do ranço ideológico demonstrado por alguns de seus auxiliares, que parecem ter como único objetivo perseguir adversários e aniquilar tudo o que não tenha a marca ideológica do atual governo. O ministro da Justiça Flávio Dino é um dos que mais têm se destacado nesse papel.
Desrespeitoso com os adversários, a ponto de reagir com ironia a qualquer pedido de explicações que recebe, Dino parece cada vez mais envaidecido com a visibilidade recém adquirida, que lhe garantiu até mesmo uma citação como possível candidato à sucessão de Lula. Atualmente no PSB, mas egresso do PCdoB — partido que idolatra o ditador soviético Josef Stalin e o tirano albanês Enver Hoxha —, Dino parece não ter se dado conta de que, por mais legítima que tenha sido, a vitória nas urnas não dá a Lula e muito menos a seus auxiliares o direito de tripudiar dos adversários e de tratá-los como inimigos. E que, por mais alto que seja o cargo que ele ocupa no Executivo, não convém se colocar acima do Legislativo — porque esse tipo de disputa nunca termina bem.
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