Quem é o dono da Petrobras?Arte O Dia
Publicado 17/03/2024 00:00
Uma lenda persistente na vida brasileira diz que a Petrobras, a estatal que reina no mercado de combustíveis no país, é um patrimônio do povo brasileiro. Trata-se, é claro, de uma mentira conveniente, na qual nem mesmo quem dela se beneficia é capaz de acreditar plenamente. Pelo poder que a empresa adquiriu ao longo de seus 70 anos de vida e pela capacidade de impor seus interesses ao país, independentemente de quem esteja no governo, pode-se dizer que, ao contrário do que diz a lenda, o mercado brasileiro é que se tornou refém da Petrobras.
A estatal do petróleo ganhou tanto poder que parece pairar acima da sociedade e, em determinados momentos, até mesmo de seu controlador, o governo. Tecnicamente, é uma companhia de economia mista controlada pela União — que detém 28,67% do capital total e 50,26% das ações ordinárias, o que lhe garante o controle sem depender de acordo de acionistas. A grande maioria de seu capital encontra-se em poder de investidores privados, estrangeiros e brasileiros. E embora seja do governo a última palavra a respeito dos destinos da empresa, a presença expressiva de investidores privados em seu capital permite que ela, como uma espécie de camaleão, mude de aparência conforme suas conveniências.
Quando é de seu interesse se beneficiar de sua condição de estatal para manter seus privilégios, ela se abriga sob as asas do governo e ali se mantém a salvo das intempéries do mercado. Quando, por outro lado, é conveniente que ela se beneficie das condições desse mesmo mercado, é a primeira a reivindicar autonomia e alardear suas condições de competir de igual para igual com qualquer companhia que atue no mesmo setor.
Aqui, cabe uma observação. Operando sob condições sempre favoráveis, a empresa realmente adquiriu uma competência técnica invejável. As tecnologias que desenvolveu, sobretudo no que se refere à prospecção e à exploração de petróleo em águas profundas, são referência no mundo inteiro. Essa é uma verdade que ninguém tem o direito de contestar. Embora sua capacidade de refino de óleo peque pela falta de eficiência e qualidade, a Petrobras é uma das companhias mais capacitadas do mundo em matéria de tirar petróleo do fundo do mar.
Também é fato, porém, que nenhuma outra petroleira relevante no mundo conta com um mercado cativo tão extenso nem dispõe de tantas salvaguardas contra a concorrência como a ela. Nada a ameaça. Criada para ser uma empresa capaz de operar “do poço ao posto”, como era moda antigamente, a Petrobras se tornou tão forte e tão protegida que nem mesmo o fim do monopólio da exploração e do refino do petróleo — que vigorou entre a criação da companha por Getúlio Vargas, em 1953, e a promulgação da Lei do Petróleo por Fernando Henrique Cardoso, em 1997 — foi capaz de arranhar o seu poder.
LUCRO REMANESCENTE — Na semana passada, a Petrobras se viu envolvida em mais um caso rumoroso, decorrente justamente dessa dificuldade de transitar entre o público e o privado conforme suas conveniências. A confusão, desta vez, se deu em torno da política de distribuição de dividendos da companhia.
Desde a reta final do governo de Jair Bolsonaro, num momento em que o Brasil inteiro lutava contra as dificuldades provocadas pela paralisia econômica gerada pela pandemia da Covid-19 e pelos efeitos da invasão da Ucrânia pela Rússia, a Petrobras seguiu na contramão do mercado. E registrou lucros espetaculares num cenário em que quase todas as empresas à sua volta enfrentavam dificuldades e muitas delas perdiam dinheiro. Naquele momento, a estatal adotou uma política generosa de distribuição de dividendos a seus acionistas — e isso fez diferença não apenas para o caixa do governo federal como, também, para os dos acionistas privados da organização. Veio o governo de Luiz Inácio Lula e, no primeiro ano, a estatal manteve a mesma batida.
No ano passado, e com base nos lucros espetaculares obtidos em 2022, a Petrobras distribuiu mais de R$ 200 bilhões em dividendos. Para este ano, a distribuição de dividendos deverá somar cerca de R$ 116,3 bilhões. Desse dinheiro, cerca de 37% são destinados ao governo federal que, conta, além das ações detidas pela União, com os papéis que pertencem ao BNDES e ao BNDESPar. Outros 15% ficam com as empresas e as pessoas físicas brasileiras que são acionistas minoritários da companhia. Os aproximadamente 48% restantes são destinados aos fundos e aos investidores internacionais que também são sócios da companhia.
No total, são mais de 300 mil acionistas e todos eles se beneficiaram da política de distribuição de dividendos. Se dependesse do presidente da companhia, o ex-senador petista Jean-Paul Prates, e dos representantes dos acionistas minoritários no Conselho de Administração, a distribuição de dividendos seria R$ 43,9 bilhões maior do que ficou decidido. Trata-se de recursos remanescentes de lucros anteriores que, de acordo com os critérios de remuneração dos acionistas que vinham sendo adotados pela companhia já deveriam ter sido repassados. Só que o acionista controlador — ou seja, o governo federal — pretende dar menos autonomia à Petrobras e orientou seus representantes, que formam a maioria do Conselho a votar contra essa decisão. Para o governo, não é hora de remunerar os acionistas, mas de investir.
A decisão foi interpretada pelo mercado como uma intervenção direta do governo federal na companhia. Ela trouxe de volta a lembrança dos momentos de dissabores que a empresa viveu sob administrações petistas anteriores e fez com que os preços das ações despencassem. Conforme um cálculo publicado pelo jornal Valor Econômico na semana passada, entre os dias 7 e 12 de março, a empresa teve uma queda de R$ 43 bilhões (número muito próximo daquele que Prates queria distribuir aos acionistas) em seu valor de mercado.
Na segunda-feira passada, o presidente Lula convocou Prates, o ministro das Minas e Energia Alexandre Silveira e outros auxiliares graduados ao Palácio do Planalto. Houve uma aposta generalizada de que Prates perderia o emprego pelo qual tanto batalhou. No final, o presidente da Petrobras parece apenas ter levado um pito do presidente e se comprometido a não mais defender posições que não estivessem afinadas com o governo. Tanto que, nos dias seguintes, passou a fazer juras de fidelidade a Lula. Prates foi mantido no cargo e tudo segue como antes no edifício Senado, na Rua Henrique Valadares, no Centro do Rio, para onde se transferiu a administraçãio da Petrobras enquanto o edifício sede da Rua Chile passa por reformas.
MONOPÓLIO PERSISTENTE — O recuo de Prates não surpreende a ninguém e apenas confirma a tradição da empresa de mudar para que tudo permaneça exatamente igual. Nos últimos anos, a empresa até andou se desfazendo de alguns negócios pouco lucrativos porque a orientação que seguia na época achou esse caminho conveniente. Se, agora, a empresa mudar de ideia, quiser fazer o caminho de volta e retomar a operação nas áreas que abandonou, fará isso sem o menor constrangimento.
É essa capacidade de se adaptar às circunstâncias e contar sempre com a proteção do governo que deu à companhia, dominada por uma corporação poderosa, formada por 37.000 funcionários extremamente bem remunerados, a força que ela tem. Operando em condições de mercado extremamente favoráveis, a Petrobras é como uma mangueira que, ao crescer frondosa, impede que qualquer outra planta cresça sob a sombra de sua copa.
Tanto é assim que, ao longo dos 26 anos de vigência da Lei do Petróleo, não surgiu uma única concorrente capaz de atuar no mercado brasileiro de combustíveis em condições de sobreviver ao poderio da estatal. E, enquanto não existir uma companhia capaz de ameaça, por mais que exista uma lei nesse sentido, ninguém poderá dizer que o monopólio acabou. Simples assim.
O fato é que a Petrobras, ao invés de se valer do poder que adquiriu para, de fato, proporcionar um mínimo de segurança energética ao consumidor brasileiro, acabou se convertendo numa máquina poderosa que tem servido apenas para servir aos próprios interesses e aos do governo da ocasião.
Conforme escrevi em nota publicada nas redes sociais e na edição deste jornal na sexta-feira passada, enquanto for uma estatal, a Petrobras jamais estará livre de interferência política.
Essa condição, por si só, não significa um problema. Aliás, é até natural, numa democracia, que o governo imprima a sua orientação a todos os órgãos sob seu controle. O problema, conforme também observei, se dá quando essa interferência ultrapassa os critérios técnicos e é exercida para beneficiar um determinado grupo. Ou, ainda, para atender visões ideológicas que não encontram respaldo na realidade.
O fato é que o monopólio do petróleo resiste no Brasil, está plenamente consolidado e nada indica que ele venha a sofrer qualquer tipo de ameaça nos próximos anos. O problema é tão profundo que não se resolveria nem mesmo com a simples transferência do controle da Petrobras para a iniciativa privada.
No ponto a que a situação chegou, a única consequência de uma eventual venda do controle da companhia para algum investidor, caso não venha acompanhada de mudanças estruturais relevantes na política energética brasileira, seria a transformação de um monopólio estatal em monopólio privado. E isso também não seria bom.
FALÊNCIA TÉCNICA — O receio do mercado diante da interferência declarada do governo na Petrobras tem a ver com os maus momentos que a empresa viveu no governo petista de Dilma Rousseff. É interessante observar que essa mesma companhia que hoje exibe vigor e distribui dividendos polpudos o bastante para fazer diferença no caixa do governo e de outros acionistas expressivos, esteve a ponto de quebrar poucos anos atrás — quando chegou a uma situação de falência técnica e só não desapareceu porque o governo de Michel Temer agiu para impedir.
Naquela que é, talvez, a decisão mais irresponsável de sua história, a companhia torrou os quase R$ 150 bilhões captados no mercado mundial em dezembro de 2010, que deveriam ser destinados a bancar os investimentos na expansão da companhia, para financiar o custeio de sua produção. Essa medida irresponsável segurou de forma artificial os preços dos combustíveis e impediu que uma eventual alta ameaçasse ainda mais a popularidade sempre cadente da presidente da República.
A empresa quase sucumbiu como consequência dessa política. Recordar histórias como essa é fundamental. Depois da crise que viveu por obra e graça daquele governo, e da proeza de ir mal quando todas as outras grandes petroleiras do mundo (menos ela e a venezuelana PDVSA) iam bem, a Petrobras passou a adotar critérios mais rigorosos de governança.
Nem isso, porém, a livrou das interferências indevidas dos governos que a controlaram. Sob Jair Bolsonaro, só para recordar, a Petrobras teve quatro presidentes em quatro anos — numa falta de continuidade administrativa mais do que prejudicial a qualquer organização sob qualquer governo em qualquer parte do mundo.
Os três primeiros presidentes da Era Bolsonaro — Roberto Castello Branco, Joaquim Silva e Luna e José Mauro Coelho — perderam o cargo porque seguiram o que determinava a política de Paridade de Preço Internacional (PPI), adotada durante o governo Michel Temer. Aprovada pelo Conselho de Administração da companhia, as administrações da empresa tinham a obrigação de elevar os preços da gasolina, do diesel e do gás de cozinha no Brasil com base na variação da cotação do barril de petróleo no mercado mundial.
O quarto, Caio Paes de Andrade, se manteve no cargo até o fim do mandato do presidente porque o Bolsonaro interveio no mercado e, sem alterar a PPI, forçou a queda dos preços dos combustíveis a partir da redução dos impostos federais e estaduais sobre os combustíveis. Veio o atual governo Lula e, com os olhos sempre voltados para o aumento da arrecadação, trouxe os impostos sobre os combustíveis para o nível em que estavam antes de Bolsonaro reduzi-los. Para evitar que isso colocasse seu governo sob críticas, ele acabou também com a PPI e a obrigação de mexer nos preços dos combustíveis a cada variação da cotação do petróleo no mercado internacional.
FÓRMULA DE REAJUSTE — Acabar com a PPI foi uma medida acertada. Principalmente porque aquela política tinha um efeito oposto ao do desastre de Dilma e provocava um aumento desnecessário e artificial sobre os preços dos combustíveis no mercado de um país que é autossuficiente em petróleo. Era preciso mudar a regra. A providência, por sinal, havia sido defendida nesta coluna, na edição do dia 26 de junho de 2022 — no calor da substituição de José Mauro Coelho por Caio Paes de Andrade na presidência da empresa.
Na época foi dito com todas as letras que o efeito prático das trocas de presidentes sobre os preços dos combustíveis era e continuaria sendo nulo enquanto não se encontrasse uma fórmula de reajuste de preços que não se prendesse apenas à cotação do barril de petróleo. “Por que não estabelecer uma fórmula que leve em conta, além do preço internacional do barril, os custos internos de produção e a adição de combustíveis renováveis, como o biodiesel no óleo e o etanol na gasolina?”, indagou a coluna.
Seja como for, assim como foi durante o governo Bolsonaro, e com ou sem a PPI, a população continua no atual governo sentindo no bolso os efeitos da política de preços dos combustíveis enquanto a Petrobras vê sua lucratividade chegar às alturas. E muita gente não vê nada de errado nisso e até defende que a empresa, em nome de sua lucratividade, tenha o poder de impor seus preços ao mercado.
Isso tem uma explicação. Depois do desastre que quase a levou à lona durante o governo Dilma, a estatal ganhou uma espécie de salvo conduto. E passou a ter o poder de tomar suas decisões em relação aos preços dos combustíveis levando em conta apenas os próprios interesses, sem se preocupar, em momento algum, com o impacto de sua política sobre o bolso do consumidor e o desempenho geral da economia brasileira.
Aqui vale uma observação! A empresa estaria mais do que certa de agir com base nesses princípios e ninguém teria o direito de abrir a boca para fazer qualquer crítica a seu comportamento caso estivesse submetida a um mínimo de concorrência. Mas isso, como se sabe, não existe.
O que existe, na prática, é o seguinte: em nome de seus próprios objetivos, dos interesses de seus acionistas e também, mas não menos importante, da sua poderosa corporação de funcionários, a empresa vive o melhor do mundo público e do mundo privado. E, enquanto a situação permanecer assim, a segurança energética não virá e o mercado brasileiro, por mais pujante que seja, se manterá exatamente como está.
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