Publicado 31/03/2024 00:00
Se o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não tivesse cometido uma daquelas escorregadelas verbais que já se tonaram habituais em suas falas de improviso, talvez a visita do presidente da França, Emmanuel Macron, ao Brasil na semana passada tivesse passado sem uma nota digna de registro. No discurso de saudação feito na ilha de Combu, no Pará, na terça-feira, na cerimônia em que Macron condecorou o cacique Raoni com a Legião de Honra, a mais alta comenda francesa, Lula se referiu ao presidente pelo nome do antecessor, Nicolas Sarcozy — que deixou o governo em 2012, quando foi substituído por François Hollande.
Foi um deslize perdoável e serviu apenas para arrancar um sorriso do visitante. De resto, a impressão que ficou foi a de que, ao longo dos três dias da visita, os dois se esquivaram dos assuntos importantes, porém espinhosos, que tinham a tratar. A pauta girou em torno de temas superficiais ou, quando muito, já discutidos. Por mais importante que seja, por exemplo, a questão da preservação da Amazônia, nada foi dito durante a visita que pudesse alterar o entendimento em torno do que pode ser feito em relação à preservação e à exploração racional dos recursos da floresta.
Por mais relevante que o submarino Toneleros, lançado ao mar na quarta-feira, no estaleiro de Itaguaí, no litoral do Rio de Janeiro, seja para a frota de defesa do Brasil, o evento também não representava uma novidade capaz de merecer uma visita presidencial. Resultado de um acordo assinado entre os dois países em 2008, a embarcação é a terceira construída no âmbito do programa de cooperação e já deveria estar navegando desde o ano de 2020.
De concreto, portanto, a viagem serviu apenas para que Macron exibisse uma simpatia e uma boa vontade que deixa de existir exatamente no assunto que mais interessa ao Brasil. Isso ficou claro em um discurso para empresários, na sede da Federação das Indústrias, em São Paulo, único evento da viagem que não contou com a presença de Lula. Ali, o presidente da França disse que o acordo da União Europeia com o Mercosul — que abriria para os alimentos produzidos no Brasil as portas do bilionário mercado do Velho Continente — é péssimo e “precisa ser renegociado do zero”.
A birra de Macron em relação a um acordo que beneficiaria, principalmente, o Brasil e a Argentina — que são os principais produtores de alimentos do Mercosul —, e que foi defendido pela maioria dos integrantes da União Europeia, é antiga e conhecida. Depois de vinte anos de negociações e de, por desentendimentos da França com a Argentina na década passada, quase ter chegado ao ponto de rompimento, os dois blocos se entenderam e conseguiram produzir um texto aceitável para os dois lados. Quando isso aconteceu, no entanto, a França apresentou uma lista de exigências ambientais que já estão sendo tratadas no âmbito de outros acordos. A desculpa que o hiperprotecionista Macron, que não mede esforços para defender os interesses dos agricultores de seu país, apresentou desta vez foi a de que o texto está superado e tudo precisa ser discutido outra vez.
Isso significa que todo o trabalho que consumiu milhares de horas de negociações ao longo dos últimos anos deve, na opinião de Macron, ser jogado na lata de lixo. Se isso acontecer, os diplomatas franceses entrarão novamente em campo, farão as exigências mais absurdas, como sempre foi de seu feitio, e renunciarão a um detalhe aqui e outro acolá. Depois, farão mais exigências, cederão mais alguns pontos e, daqui a vinte anos, quando tudo estiver novamente pronto para ser assinado, algum sucessor de Macron entrará em campo para dizer que o acordo estará superado e exigirá que tudo seja refeito a partir do zero.
Ironias à parte, se existe um ponto que todo mundo sabe a respeito da economia francesa é que parte da decadência que ela enfrenta hoje em dia se deve ao uso e abuso de medidas protecionistas que resultam em subsídios bilionários aos agricultores e que hoje pesam nas costas de toda a União Europeia. Embora seus agricultores recebam do governo a ajuda mais generosa do mundo em troca dos alimentos caríssimos que entregam à população, nenhum governante do país teve, tem ou tão cedo terá a coragem de contrariar seus interesses. Macron é apenas mais um elo nessa corrente. A diferença é que ele parece ter prazer superior ao dos antecessores na hora de defender medidas protecionistas, retrógradas e contrárias aos princípios do livre comércio.
PUNIÇÃO VELADA — De resto, a visita de Macron, por mais que tenha sido repleta dos rapapés e salamaleques que costumam cercar as formalidades diplomáticas, foi mais uma demonstração da tibieza da política externa do Brasil de hoje. O país, pelo que se vê, se tornou mestre na arte de estender o tapete vermelho para quem só quer tirar vantagens da parceria com ele — como é o caso da França. E, ao mesmo tempo, faz tudo que está a seu alcance para se afastar daqueles que podem lhe trazer vantagens comerciais e tecnológicas.
Seja como for, o fato é que, durante sua passagem pelo Brasil, o protecionista Macron se mostrou muito à vontade para anunciar uma medida que contraria de maneira frontal os interesses do anfitrião. Será que a defesa do protecionismo francês é a única causa dessa desenvoltura? Certamente, não. Em primeiro lugar, Macron tinha a certeza de que seu gesto não geraria qualquer reação negativa por parte do Brasil. Outro ponto é que ele não falava apenas em seu próprio nome. Nos bastidores da diplomacia internacional circula a versão de que o protecionismo exagerado não é a única causa da rejeição da França ao acordo com o Mercosul, que seria extremamente vantajoso para o Brasil.
A posição do governo de Macron, que agora conta com a simpatia dos principais líderes europeus, é uma espécie de punição velada ao Brasil. Desde o início do atual governo Lula, o país tem se alinhado com a Rússia, com o Irã, com os terroristas do Hamas e com uma série de posições que, cada um à sua maneira, geram algum tipo de ameaça à Europa. Não haveria, portanto, o interesse em negociar qualquer acordo que o beneficiasse.
IMPACTO NA POPULARIDADE — Como já foi dito neste espaço em mais de uma oportunidade, o Brasil tem optado nos últimos anos por uma linha de atuação diplomática orientada mais pelas afinidades ideológicas com ditaduras espalhadas pelo mundo do que pelo pragmatismo necessário para colocar os interesses do Estado e da sociedade brasileira em primeiro plano.
Desde a primeira posse de Lula na presidência da República, em 2003, teve início um processo de empobrecimento diplomático, com o afastamento gradual de seus aliados mais tradicionais e a busca por aproximação com países totalitários que demonstrassem algum tipo de hostilidade em relação aos Estados Unidos e à União Europeia. Desde o primeiro momento, a proximidade com a França tem sido a exceção que confirma essa regra.
Nesse cenário, a visita de Macron foi parte do esforço do Itamaraty para mostrar, dentro e fora de casa, que o Brasil também é capaz de conviver com democracias. Mesmo que a França tenha se apequenado e perdido boa parte do poder de influência que um dia exerceu sobre o mundo, e muito embora os principais assuntos da agenda comum de Lula e Macron não tenham passado de formalidades sem maiores consequências práticas, é muito melhor para a imagem do presidente brasileiro posar para fotografias ao lado do mandatário de uma democracia consolidada, como é o caso do país europeu, do que dos ditadores com quem tem andado ultimamente.
Isso mesmo: para a opinião pública do Brasil e do mundo, é muito melhor que Lula apareça na foto em companhia de Macron do que, para ficar apenas com o exemplo mais óbvio, ao lado do déspota venezuelano Nicolás Maduro. Este é o ponto importante. A queda da popularidade de Lula nas recentes pesquisas de opinião levou o Itamaraty a ensaiar uma mudança de postura em relação a algumas ditaduras que sempre contaram com a simpatia das administrações petistas. Em nome dessa mudança, o Brasil soltou, na terça-feira passada, uma nota em que manifestava “expectativa e preocupação” em relação ao processo eleitoral em curso na Venezuela.
A expectativa em relação ao resultado da eleição marcada para o dia 28 de julho é desnecessária. Qualquer cidadão minimamente esclarecido sabe que nada existe de mais previsível do que o resultado das urnas no país vizinho. E que o pleito, caso de fato aconteça, nada mais será do que uma pantomima destinada a dar ao ditador Maduro uma fantasia de legitimidade incapaz de enganar a quem quer que realmente leve a democracia a sério.
Quanto à preocupação manifestada, ela é, no mínimo, tardia. A diplomacia brasileira só resolveu se mexer depois que o silêncio diante da tirania de Maduro passou a pesar de forma negativa na imagem de Lula. O país se manteve em silêncio enquanto Maduro tirava da frente todos os adversários capazes de confrontá-lo nas urnas e mandava para a cadeia os opositores que elevavam o tom contra ele.
Na semana passada, seis opositores perseguidos por Maduro se refugiaram na embaixada da Argentina em Caracas. Contrariando as regras básicas de convivência entre países civilizados e independentes, o ditador mandou cortar o fornecimento de eletricidade à sede da representação. O gesto motivou uma resposta dura do presidente Javier Milei, que ameaçou reagir caso os funcionários da embaixada fossem expostos a qualquer tipo de risco.
PALAVRAS ESCOLHIDAS — Antes de soltar a nota chocha e obsequiosa com que se referiu às “eleições” venezuelanas, o assessor especial para assuntos internacionais do governo brasileiro, Celso Amorim, ainda tentou tratar do assunto pessoalmente com as autoridades de Caracas. Na segunda-feira passada, depois que a socióloga Corina Yoris, de 80 anos, teve sua candidatura rejeitada pela (perdão!) “Justiça” eleitoral venezuelana, Amorim tentou discutir o assunto por telefone com uma série de autoridades. Não foi atendido por nenhuma delas.
Corina Yoris disputaria a presidência por indicação de Maria Corina Machado, vencedora de prévias eleitorais, que foi simplesmente proibida por Maduro de concorrer ao Palácio Miraflores. É grave que ninguém na cúpula venezuelana tenha se dignado a atender ou retornar o telefonema de Amorim que, todo mundo sabe, é o braço direito de Lula para questões internacionais.
Finalmente convencido de que ninguém em Caracas estava minimamente interessado na opinião do Brasil sobre o tema, Amorim concordou em soltar a nota que, antes de ser publicada, foi submetida à aprovação de Lula. A resposta venezuelana, como esperado, foi marcada pela covardia típica das tiranias. Sabendo que o Brasil se calaria diante de qualquer ofensa que recebesse, a ditadura venezuelana respondeu dizendo que “repudia o comunicado cinzento e intervencionista, redigido por funcionários do Itamaraty, que parece ter sido ditado pelo Departamento de Estado dos EUA”.
As palavras parecem ter sido escolhidas a dedo para ofender os diplomatas brasileiros. Desde a posse de Lula para seu terceiro mandato, o Itamaraty tem feito de tudo para eliminar qualquer traço da simpatia aos Estados Unidos que marcou a atuação do órgão durante do governo de Jair Bolsonaro. Depois de todo o esforço para se afastar dos Estados Unidos, terem que ouvir dos tiranetes venezuelanos que a nota escrita com todo o cuidado, para não melindrar o caudilho Maduro, foi ditada pelo Departamento de Estado americano deve ter magoado Amorim, o chanceler Mauro Vieira e toda a diplomacia ideológica habituada a defender terroristas e ditadores sanguinários e a manter distância das potências democráticas.
NARRATIVA DE MADURO — Lula e seus assessores para a área internacional não têm, no entanto, o direito de se queixar de Maduro. Na prática, o déspota venezuelano está apenas colocando em prática os conselhos que recebeu durante a visita ao Brasil em maio do ano passado. Na ocasião, Lula disse que a Venezuela era “vítima de uma narrativa de antidemocracia e autoritarismo”. De acordo com o petista, caberia a Maduro “mostrar sua narrativa para que as pessoas possam mudar de opinião”. Menos de um ano depois, e diante da crítica tímida feita pelo Brasil, o ditador surge com a narrativa de que os diplomatas brasileiros estão alinhados com os Estados Unidos. Isso deve ter doído...
O ideal seria que a condenação à ditadura venezuelana fosse firme e marcada pela convicção de que é inaceitável para um país democrático manter um relacionamento subserviente com uma ditadura sanguinária. Mas, ainda que tenha sido motivada pela queda na popularidade de Lula, é reconfortante para o povo brasileiro assistir a uma mudança de posição do governo nesse sentido. Quem anda numa companhia como a de Maduro corre o risco de se manchar com a sujeira que ele produz. Já passou da hora de o Brasil se dar conta disso.
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