Arte da coluna 'Um Olhar sobre o Rio'Arte Paulo Márcio
Publicado 30/06/2024 00:00
O título deste artigo remete a uma paródia que ficou conhecida nos recreios das escolas brasileiras nos anos 1970 — e que era cantada pela meninada mesmo durante os anos mais pesados dos governos militares. A música original se chamava Eu Te Amo Meu Brasil. Ela fez sucesso na interpretação do grupo Os Incríveis e foi uma peça importante na propaganda do regime autoritário. Na paródia, os elogios às belezas do país que estavam nos versos originais foram substituídos pela apologia à droga. O primeiro deles, que dizia, “As praias do Brasil, ensolaradas, la-laiá-lá” foi trocado por “maconha no Brasil foi liberada, lá-laiá-lá”.
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A paródia prosseguia com citações que não faziam sentido nem no passado nem no presente — mas foi impossível não lembrar dela depois da sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) da terça-feira passada. Os ministros puseram fim a um caso que começaram a avaliar em 2011. Entre paralisações, pedidos de vista e votos surpreendentes, a Corte, por seis votos a cinco, descriminalizou a posse de até 40 gramas de maconha. Pela decisão, a partir de agora deixa de ser crime adquirir, guardar, transportar ou portar essa quantidade de maconha para uso pessoal.
Daqui por diante, quem for pego com qualquer quantidade de maconha até esse limite será considerado usuário. Acima daí, deverá ser enquadrado como traficante. O que vai acontecer é um mistério. Ao mesmo tempo em que permite ao usuário andar para lá e para cá com seus 40 gramas da erva no bolso, a medida continua proibindo o comércio e não desautoriza a ação da polícia contra os traficantes — mesmo porque, se a compra passou a ser permitida, a venda do entorpecente continua sendo crime.
O mesmo tratamento será dado para quem mantiver uma plantação de maconha dentro de casa. Quem cultivar até seis pés da planta fêmea — que contém as substâncias que “dão barato” — poderá dizer que elas estão ali para uso próprio. Acima disso, será enquadrado como traficante.

“VAPOR” E “AVIÃO” — Quem for flagrado com 39,9 gramas de maconha poderá ser considerado traficante desde que as “circunstâncias” da prisão indiquem que aquele indivíduo, além de fazer uso, também comercializa a planta. O que se pode prever é que qualquer inquérito que envolva tráfico de maconha será objeto de discussões intermináveis e muito provavelmente abrirá espaço para querelas que sobrecarregarão ainda mais um sistema que, por se prender a minúcias sem sentido como essa, acaba não fazendo aquilo que a sociedade espera que ele faça.
Outro ponto que entrou em foco e deu o que falar depois do anúncio da decisão foi a limitação que a descriminalização da maconha, obviamente, impõe ao trabalho da polícia. Ninguém deve se espantar se, porventura, aparecer algum desses gênios moderninhos do direito “garantista” para exigir que, além das câmaras corporais que terão que levar presas a seus uniformes durante as operações, os policiais também sejam obrigados a carregar uma balança de precisão para aferir no ato da abordagem aos suspeitos se a maconha apreendida ultrapassa ou não os limites definidos pelo STF.
É provável que o tratamento dado pela Justiça ao pequeno traficante, que muita gente já considerava frouxo mesmo antes dessa decisão, se torne ainda mais flexível. E que as minúcias e as chicanas jurídicas que já acontecem a torto e a direito nos processos criminais tornem praticamente impossível punir as pessoas que estão na porta de entrada do sistema criminoso que se inicia pelo tráfico e evolui para outras drogas.
Ninguém chega ao topo de qualquer organização criminosa, dessas que são responsáveis pela comercialização de toneladas de substâncias muito mais pesadas e nocivas do que a maconha, sem começar por ela. E ninguém se torna um chefão do tráfico sem ter sido, no início da “carreira” criminosa, uma “mula”, um “avião” ou um “vapor”. Em tempo: “avião” ou “mula” são aqueles sujeitos que transportam pequenas quantidades de drogas de um ponto a outro e têm o contato direto com o usuário. Já o “vapor” é geralmente o menor de idade encarregado de vigiar a boca de drogas e, depois de dar o alarme, “evaporar”, ou seja, desaparecer, ao primeiro sinal de presença da polícia.

TRATAMENTO CAMARADA — Tão logo a decisão foi anunciada, a discussão tomou o rumo esperado e, como qualquer tema que se debate no Brasil, acabou descambando para a habitual troca de acusações entre os apoiadores e os opositores do governo. A esquerda “progressista” aplaudiu a medida por considerá-la uma proteção dos usuários contra a ação policial que, de acordo com essa turma, tem como único objetivo ampliar a punição sistemática a pretos e pobres nas comunidades mais vulneráveis. A direita, por sua vez, não tardou em identificar na decisão mais uma prova de que a Justiça brasileira, na opinião de seus adeptos mais renitentes, trabalha mais a favor do que contra os traficantes de drogas.
Tanto um lado como o outro estão errados em enfrentar esse debate com argumentos superficiais que, ao fim e ao cabo, servem apenas para manter a discussão na superfície — quando o certo seria tratar do assunto com serenidade e profundidade. Uma medida polêmica como essa vale tanto pela decisão tomada — e que deve ser acatada até segunda ordem — quanto por sua repercussão junto à sociedade. E a repercussão, nesse caso, foi a pior possível.
Na avaliação da opinião pública, a Justiça parece mesmo empenhada em aliviar o peso da lei sobre os pequenos traficantes. Tanto isso é verdade que, tão logo a sentença foi proferida, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) convocou um mutirão que, após a publicação do acórdão, avaliará a situação dos 6.343 processos que envolvem porte de maconha e que estavam parados em todo o país à espera do pronunciamento do STF.
Além disso, será feito um levantamento de todos os casos já julgados que podem ter a sentença alterada em função da decisão de terça-feira passada. “A regra básica, em matéria de direito penal, é que a lei não retroage se ela agravar a situação de quem é acusado ou esteja preso. Para beneficiar, é possível”, disse o presidente do STF, que é também presidente do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso.
Outro ponto lembrado por Barroso depois da decisão é o de que a medida terá um impacto positivo sobre o sistema carcerário, reduzindo custos e, também, a superlotação nas cadeias. De acordo com um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), das 852 mil pessoas recolhidas ao sistema prisional brasileiro, conforme dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais, cerca de 19 mil cumprem penas por terem sido presas com até 100 gramas de maconha.
Esse grupo custa ao sistema carcerário de todo o país cerca de R$ 592 milhões por ano. Dele fazem parte os quase 9 mil presidiários condenados depois de terem sido flagrados com até 25 gramas de maconha. Esse segundo grupo custa ao sistema prisional algo em torno de R$ 263 milhões por ano. A pergunta que se impõe é: será que esse dinheiro é bem empregado mantendo na cadeia pessoas que transgrediram a lei? Ou será que ele deveria ser destinado a reforçar a segurança e o sistema de saúde pública para proteger a sociedade dos criminosos que serão postos na rua e que, muito provavelmente, voltarão a levar a mesma vida que os levaram para a cadeia?

CREDIBILIDADE DO SISTEMA — É preciso sempre lembrar que as pessoas que estão presas por portar pequenas quantidades de drogas não estão na cadeia apenas porque um policial autoritário, a seu próprio juízo, resolveu colocá-las atrás das grades. Para estar numa penitenciária, elas foram presas em flagrante ou, então, depois de uma investigação que recursos materiais e humanos pagos pelo contribuinte.
Tiveram direito, no ato da prisão, à audiência de custódia em que puderam se explicar a um juiz. Quem não tinha dinheiro para contratar um advogado, teve direito a um Defensor Público nomeado pelo Estado. Foram, então, denunciadas pelo Ministério Público, que aceitou os argumentos da autoridade policial e encaminhou o processo à Justiça. A ação foi acolhida por um magistrado que, depois de seguir os trâmites previstos em lei, considerou os réus culpados e os condenou à pena de prisão.
Ao longo de todo processo, tiveram amplo direito de defesa — enquanto os policiais que os prenderam se viram na obrigação de comprovar uma, duas, dez vezes que tinham seguido o procedimento legal e estavam certos ao agir contra aquele indivíduo.
Uma das características da lei brasileira, que trata o tráfico de drogas como um crime hediondo, é que a pessoa só será presa por esse motivo se houver comprovação física de que a droga existe. Fotografias, testemunhos e até recibos da operação não são, nesses casos, provas suficientes para o prosseguimento do processo se a droga não estiver em poder do traficante na hora da prisão. Depois, ela deverá ser mantida em depósitos até o trânsito em julgado do processo.
Ou seja, embora os sinais ostensivos da presença do tráfico de drogas estejam por toda parte, é muito difícil ser condenado por esse crime no Brasil. Sendo assim, dizer que essas 19 mil pessoas que cumprem penas por portar “pequenas quantidades” de drogas estão privadas da liberdade em razão de algum tipo de arbitrariedade de um sistema injusto é pisotear em toda a credibilidade da polícia e da Justiça do Brasil.

DISCUSSÕES ACALORADAS — A medida do STF facilita a vida do usuário, mas não promove uma liberação tão geral quanto parece. Ela estabelece que, independentemente da quantidade da droga em poder da pessoa investigada, a autoridade policial deverá observar outros aspectos antes de considerá-la apenas uma usuária. Será preciso analisar, antes de liberar o acusado, a forma como a erva está guardada, a variedade da substância apreendida, o registro de operações comerciais relacionadas à droga, contatos de usuários ou traficantes no telefone celular e, ainda, as circunstâncias da apreensão.
Ou seja, ainda há muita coisa para se discutir em torno dessa questão antes de imaginar que ninguém terá problemas caso seja flagrado de posse de uma pequena quantidade da droga. Tudo permanecerá mais ou menos como é atualmente e é isso que desperta a curiosidade sobre a motivação do STF ao levar à frente esse julgamento nesse momento especialmente delicado do relacionamento entre os poderes.
As circunstâncias que cercam a conclusão do julgamento passam a impressão de que, mais do que encerrar o assunto, o STF pretendia afirmar seu poder neste momento em que o Congresso não parece disposto a ceder mais espaço para o Judiciário. Quando o projeto voltou a andar no ano passado e começou a ficar delineada a tendência de que os ministros tendiam a aprovar a descriminalização, o Congresso se apressou e acelerou a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional 45, de 2023.
Conhecida como PEC das Drogas, a matéria, de autoria do presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG), estabelece critérios mais duros para classificar o tráfico de drogas e, em suma, considera crime o que o STF entendeu que não é. O projeto deverá ser levado à votação nos próximos dias e tudo indica que será aprovado. Isso significa que a decisão da Suprema Corte não encerra a discussão e que a aprovação da PEC 45 pelo Parlamento, quando acontecer, servirá apenas para jogar mais lenha na fogueira e prolongar um debate que, com todo respeito, é importante demais para continuar a ser travado fora de limites técnicos e científicos. E não pode continuar a ser levado adiante, como vem acontecendo, ao sabor de paixões políticas ou da disputa entre poderes.

PORTA DE ENTRADA — “A Suprema Corte não tem que se meter em tudo. Ela precisa pegar as coisas mais sérias, sobretudo o que diz respeito à Constituição, e virar senhora da situação. Mas não pode pegar qualquer coisa e ficar discutindo, porque aí começa a criar uma rivalidade que não é boa, a rivalidade entre quem manda: o Congresso ou a Suprema Corte?”, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em entrevista ao Portal UOL, ao comentar a decisão dos ministros sobre a descriminalização da maconha.
O presidente está certo, mas é preciso considerar, também, o outro lado da moeda. Da mesma forma que muita gente considera estranho o fato de o STF ter começado a se mexer justamente no momento em que o Congresso avalia uma PEC sobre o tema, o fato é que os parlamentares também só demonstraram preocupação com o assunto depois que o julgamento se pôs a andar na Corte. Teria sido melhor que uma negociação séria e profunda entre os três poderes tivesse tratado da questão e gerado resultados muito mais positivos do que as decisões desencontradas e açodadas que vêm sendo tomadas em torno de um tema tão sensível.
A sociedade, claro, não recebeu bem a decisão dos ministros — sobretudo neste momento em que o tráfico de drogas é o lado mais evidente da onda de violência que transformou a segurança pública na preocupação número 1 dos cidadãos. A questão é séria demais para se limitar apenas em definir uma determinada quantidade de gramas de maconha, definida sem qualquer critério que não fosse a vontade dos ministros. O limite de 40 gramas estabelecido na sessão de terça-feira passada foi definido sem qualquer critério científico. Ele reflete apenas a média das propostas apresentadas pelos ministros desde que o tema começou a ser tratado pela Casa, no distante ano de 2011.
Uma lei sobre o assunto deve envolver vários aspectos. É preciso considerar que, mesmo sendo considerada uma droga mais leve, a maconha age sobre o sistema nervoso central e provoca efeitos que inclui, entre outros, déficits cognitivos de longo prazo, ansiedade, surtos psicóticos e perda de concentração. A erva é a porta de entrada para o mundo das drogas. Depois de experimentá-la e de se habituar a seus efeitos, é comum que os usuários partam para experiências mais radicais com a cocaína e com outras substâncias mais pesadas.
Ou seja, não importa se a maconha seja a estrela principal ou mera coadjuvante no mundo das drogas. O que interessa é que ela faz parte de uma engrenagem criminosa cada vez mais sólida, poderosa e nociva — que deve ser analisada não apenas pelo lado criminal mas também por seus efeitos sociais. A maconha é parte de um sistema que deve ser visto à luz do Direito, da pauta social, da saúde pública e, claro, da segurança. E nunca da ideologia de quem defende ou de quem ataca seu uso.
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