Nuno VasconcellosDaniel Castelo Branco/Agência O Dia
Publicado 07/07/2024 00:00 | Atualizado 07/07/2024 14:40
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não deixa passar uma única oportunidade de falar mal dos banqueiros. Sempre que pode, aponta sua metralhadora verbal para eles e os trata como se o tal “mercado financeiro” não passasse de uma quadrilha. Ou de um monte de gente ardilosa, que age na calada da noite com a intenção deliberada de tirar o pão da boca dos pobres.
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Nessas últimas semanas, então, Lula tem usado e abusado do direito de atacar esse pessoal. Na quarta-feira da semana retrasada, dia 26 de junho, por exemplo, em entrevista ao portal UOL, o presidente direcionou suas críticas à Faria Lima, a avenida de São Paulo que concentra os maiores e mais vorazes operadores financeiros do país.
“A Faria Lima tem alguém que quer mais bem ao Brasil do que eu? Que tem interesse de melhorar a vida do povo mais do que eu?”, perguntou o presidente. “Vamos ser francos! Vocês acham que quando eles estão discutindo o aumento da taxa de juros eles estão pensando no cara que está dormindo debaixo de uma ponte? No cara que está morrendo de fome?” A reação do “mercado” às críticas do presidente foi instantânea. E provocou nas mesas de câmbio das corretoras um frenesi e gerou na cotação do dólar uma elevação que teve início antes mesmo do conteúdo da entrevista ser conhecido na íntegra.
As críticas tinham como alvo específico o comportamento do mercado de câmbio que, pelo que se deduz ao ouvir as palavras do presidente, vem sendo manipulado pelos banqueiros com o objetivo de lesar o povo. Na véspera dessa declaração, cada dólar era negociado, de acordo com os dados do Banco Central, por R$ 5,43. Ao final da quarta-feira em que Lula disparou contra a turma “da Faria Lima”, a cotação bateu em R$ 5,51, uma desvalorização de quase 1,5% em um único dia.
A alta prosseguiu nos dias seguintes, sempre atribuída às declarações de Lula — que não recuou nem mesmo depois de ter sido alertado por assessores sobre o efeito de seus ataques constantes sobre a cotação da moeda. Na semana passada, o presidente esteve em Salvador para comemorar o 2 de julho, data da independência da Bahia, e anunciar a liberação de R$ 4 bilhões em obras do PAC no estado. Mais uma vez, não poupou críticas ao “mercado” e, mais uma vez, a cotação da moeda americana subiu no ritmo de suas declarações. “Não tenho que prestar contas a nenhum ricaço ou banqueiro deste país, mas ao povo pobre e trabalhador”, disse. O presidente anunciou ali que não tem a menor intenção de cortar gastos com programas sociais — o que bastou para elevar a cotação da moeda norte-americana para R$ 5,67 na terça-feira, dia 2 de julho...
Em defesa do presidente e do próprio “mercado”, é importante dizer que o Brasil não é o único país que, neste momento, vê sua moeda perder valor diante do dólar. Os juros nos Estados Unidos estão mais elevados do que estiveram nos anos anteriores e isso tem atraído para a maior economia do mundo uma parte dos recursos que os investidores internacionais antes utilizavam para buscar lucros em economias de juros estratosféricos, como é o caso do Brasil. Isso reduz o estoque de dólares disponíveis e faz dele uma moeda mais cara no mundo inteiro.
Mas o Brasil tem se destacado nessa corrida. Um levantamento da consultoria Austin Rating feito com base em dados do Banco Central e publicado na segunda-feira passada pelo portal Poder 360, mostra que, no primeiro semestre deste ano, entre todas as moedas do mundo, o Real foi a quinta que mais perdeu valor frente ao dólar. O problema não é nem tanto a posição que o país ocupa — mas com quem ele divide os primeiros lugares do ranking.
Em primeiro lugar está a Naira, moeda da Nigéria, com 42,3% de desvalorização. Em segundo, a libra do Egito, com 36%. A libra do Sudão do Sul vem em terceiro, com 29,8%. Gana, com seu Cede, surge em quarto lugar, com 21,6%. Em quinto lugar, o Real brasileiro teve uma desvalorização de 13,4% no período — à frente do Iene japonês (12,4%) e do combalido Peso Argentino (11,6%).
Acontece, porém, que entre todas as moedas que perderam valor frente ao dólar, o Real deve ser a única que teve sua queda estimulada por declarações do próprio presidente da República. É por essas e outras que, na avenida Faria Lima, em São Paulo, comenta-se que Lula pode até não gostar dos ricaços nem dos banqueiros. Mas eles adoram Lula. Sempre que o presidente abre a boca para criticá-los, os ricaços ficam mais ricaços e os banqueiros veem seus lucros aumentarem ainda mais.

OFERTA E PROCURA — Até a turma do agronegócio, outro pessoal que sempre foi tratado como inimigo pelo presidente, esfrega as mãos de felicidade toda vez que uma declaração de Lula repercute no câmbio e eleva a cotação do dólar. O que eles ganham com isso? Elementar: todo exportador adora quando o Real se desvaloriza em relação ao dólar. Assim, ele precisa gastar uma quantidade menor dos dólares que recebe em troca da soja, do milho e da carne que vende no exterior para cobrir as despesas fixas em reais com a produção no Brasil.
São razões como essa que fazem cada palavra do presidente contra o “mercado” soar como uma nota musical aos ouvidos dos operadores desse mesmo “mercado”. Juntas, essas notas formam uma sinfonia que os estimula a agir conforme sua própria natureza. Para eles, não importa se o governo é de esquerda, de direita ou de centro. O “mercado” não tem ideologia, tem interesses. E ele sempre encontra uma maneira de se apoiar nas expectativas de quem deseja manter seu dinheiro a salvo das intervenções estatais e, assim, obter lucros extraordinários quando tudo à sua volta parece desmoronar.
Atenção! O mercado não faz isso apenas para proteger o dinheiro dos banqueiros e dos ricaços — mas também os recursos da classe média, das pequenas empresas, dos fundos de aposentadoria e de todos os que desejam proteger sua poupança da desvalorização causada pela inflação.
Não estamos falando de uma terra de ninguém. Os movimentos do “mercado” são fiscalizados pelas autoridades e os impostos que ele recolhe ajudam a bancar a voracidade da máquina estatal. Ele busca, e nesse ponto o presidente está certíssimo, o maior lucro possível. Mas não age dessa maneira porque é malvado ou sem escrúpulos. Ele age porque é assim que ele funciona em Nova York, em Londres, em Hong Kong ou em qualquer outro lugar. Em todo lugar do mundo, especular faz parte da essência do mercado.
Portanto, cada vez que o presidente dá uma declaração que facilita a especulação, o “mercado” agradece.
Sempre que ele se recusa a discutir a necessidade de redução dos gastos correntes do Estado, ele está sinalizando que continuará se endividando para fechar suas contas. Declarações como essa geram o receio de que o governo amplie o gasto do dinheiro público, como se não houvesse limite fiscal a ser respeitado. Isso estimularia a inflação e reduziria o poder de compra do Real. Numa hora como essa, os investidores recorrem ao dólar para proteger o valor de seus recursos.
A cada crítica ele que faz ao presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto e, pior do que isso, a cada insinuação de que, depois da troca de comando no BC, no final deste ano, a instituição seguirá a cartilha do governo sobre a definição da taxa de juros, mais o mercado vai reagir e mais vai especular.
Lula, no entanto, insiste na mesma tecla. Por mais que seus conselheiros econômicos recomendem moderação em suas declarações e peçam que ele não brinque com uma fogueira que não pode controlar, ele volta e meia dá uma bofetada no mercado. Que, ao invés de responder, oferece a outra face. Ou, numa imagem mais precisa, age como se estivesse numa competição de judô e usa a força do adversário em seu próprio benefício.

RECUO TÁTICO — Lula quer porque quer forçar o presidente do BC a acelerar o processo de redução da taxa básica de juros no Brasil. Na última reunião do Copom, no dia 19 de junho, conforme já foi discutido neste espaço, o colegiado que é integrado por todos os diretores do Banco decidiu, por unanimidade, manter a taxa Selic nos mesmos 10,5% definidos na reunião anterior, no dia 8 de maio.
No encontro de maio, os quatro diretores nomeados por Lula defenderam uma redução de meio ponto percentual — que baixaria a Selic para 10,25%. Os cinco remanescentes do governo Bolsonaro que ainda estão no BC (no processo de mandatos fixos que deu autonomia à instituição) insistiram na manutenção da taxa em 10,5%. Assim, muita gente estranhou a unanimidade que, na reunião seguinte, manteve os juros nesse patamar.
Na opinião da maioria dos “analistas”, a decisão unânime do Copom significou a adesão do grupo “lulista”, liderado pelo economista Gabriel Galipolo, às teses pró-mercado do grupo que já estava no BC antes da posse do atual governo e que, segundo Lula, age sob orientação política de Jair Bolsonaro. Quem acompanhou a situação de perto, no entanto, percebeu que o movimento realizado pelos quatro lulistas do Copom está mais para um recuo tático do que para uma capitulação.
Sabendo que não teriam votos suficientes para promover mais uma redução da taxa neste momento e sabendo que uma nova divergência no colegiado poderia estimular ainda mais as manobras especulativas do mercado, Galipolo e os outros três diretores nomeados por Lula preferiram, desta vez, não bater de frente com os colegas egressos da gestão anterior. Eles sabiam que, mesmo votando para que a taxa permanecesse como estava, não seriam responsabilizados e o ônus da decisão recairia integralmente sobre Campos Neto. Se, ao contrário, insistissem na divergência, corriam o risco de ser mal-recebidos pelo “mercado” depois de assumir a direção do BC, no final deste ano.
O problema desse embate sem sentido é que pode tirar a credibilidade da redução da taxa de juros que deve acontecer depois da saída de Campos Neto não porque Lula deseja, mas porque existe espaço para isso. Todo mundo enxergará o movimento como uma capitulação do BC às pressões de Lula quando, na verdade, existe respaldo técnico para a medida. Na visão de muitos economistas, a receita adotada por Campos Neto tem sido, de fato, mais amarga do que o necessário para manter a inflação sob controle neste momento. E que não haveria qualquer efeito inflacionário se, no segundo semestre, ao invés de ser mantida em 10,5% até dezembro, como tudo indica que será, a taxa convergisse para os 9% ao ano que o próprio “mercado” projetava no início de 2024.
De acordo com os economistas que pensam dessa forma, não existe no cenário atual nenhuma pressão causada por aumento de demanda ou por excesso de consumo — e a eficácia da taxa de juros como antídoto inflacionário consiste exatamente em controlar a procura exagerada que faz aumentar os preços das mercadorias. Mas, de acordo com quem acompanha o raciocínio de Lula, a pressão do presidente por uma redução mais acelerada nos juros não tem a ver com qualquer preocupação relacionada à execução da política monetária.
Tudo que parece interessar ao presidente com a redução da taxa de juros é o impacto que isso teria sobre a dinheirama que o governo gasta todo mês para rolar sua dívida mobiliária no mercado financeiro. Segundo cálculos arredondados, cada ponto percentual de redução da Selic significaria, ao final de um ano, R$ 50 bilhões que o governo deixaria de usar na rolagem da dívida e que poderiam ser destinados para bancar gastos públicos.

GATO ESCALDADO — No meio de tudo isso, está quem de fato interessa—mas que dificilmente tem seus interesses levados em conta nessa hora. A sociedade brasileira é um gato escaldado em matéria de inflação e teme a possibilidade de ver voltar o desajuste de preços que existia antes da entrada em circulação do Real — que, por sinal, completou 30 anos na semana passada. Porém, ao mesmo tempo em que teme a volta do descontrole inflacionário que a incomodou até 1994, a sociedade espera pelo prometido crescimento da economia. É por essa razão que, na opinião de um grupo respeitável de economistas, existe espaço para uma política monetária um pouco mais ousada do que essa que vem sendo conduzida por Campos Neto. Uma política que facilite o crescimento econômico e force os bancos a cobrar juros menores das pessoas e das empresas que precisam de capital para se financiar.
Alguns indicadores apontam que, de fato, há espaço para um pouco mais de ousadia. A despeito do impacto das palavras de Lula sobre o câmbio, o país não corre risco de entrar em colapso nos próximos meses. O dado mais evidente, nesse sentido, diz respeito às reservas cambiais. Uma situação mais instável geraria evasão de divisas e as reservas cairiam. O fato, porém, é que elas estão num nível superior ao que estavam no dia em que o presidente tomou posse. Quando Lula assumiu, em janeiro de 2023, as reservas cambiais brasileiras eram de US$ 322 bilhões de dólares. Hoje elas são de US$ 355 bilhões.

POPULAÇÃO VULNERÁVEL — Outros indicadores também ajudam a demonstrar que a situação do país não é tão desesperadora quanto querem fazer crer os que se apoiam exclusivamente na flutuação do dólar para dizer que tudo vai de mal a pior. Dias atrás, o IBGE divulgou a taxa de desemprego referente ao trimestre encerrado no mês de maio. De acordo com o instituto, a taxa de pessoas em busca de ocupação no país, que era de 8,3% em maio do ano passado, caiu para 7,1% — a menor desde 2014.
A inflação acumulada entre janeiro de maio deste ano é de 2,27% pelo IPCA — que é o índice utilizado pelo Banco Central para efeito de cálculo da meta. Nada indica, pelo menos até aqui, que o indicador ultrapassará o limite definido pelo BC para a inflação deste ano — que está entre 1,5% e 4,5%. Os indicadores mostram que a situação da inflação está longe de ser desesperadora. Esse é o lado bom da história. O lado ruim é que os números também mostram que o país está longe de dar a arrancada de que necessita para gerar mais renda e garantir empregos de melhor qualidade para a população. E se tornar, enfim, um país desenvolvido.
Para o país crescer e se desenvolver, não basta contar com indicadores estáveis. Ele precisa, também, inspirar confiança nos investidores que dispõem de recursos e ousadia suficientes para abrir empresas, fazer seus negócios crescerem, gerar empregos, obter lucros, recolher impostos justos, reinvestir parte de seus lucros e continuar crescendo. Um país próspero e capaz de gerar recursos para investir no crescimento da população vulnerável até que ela deixe de ser vulnerável e possa, também, participar do esforço pelo desenvolvimento.
Num cenário como esse, a situação do Brasil poderia estar melhor se o presidente, ao invés de se manter em permanente campanha eleitoral, utilizasse seu indiscutível poder de influenciar as pessoas para liderar o esforço por uma reforma administrativa capaz de melhorar a qualidade da máquina estatal brasileira. Uma reforma que dê mais racionalidade aos gastos públicos e não permita que o “mercado” que o presidente tanto critica receba de bandeja tantas oportunidades para especular.
Oportunidades que são oferecidas, mais do que pela incontinência verbal do presidente, por um Estado ineficiente e perdulário que, por não medir o tamanho de seus gastos, está sempre dependendo do “mercado” para bancá-lo. É difícil imaginar que Lula mude a ponto de liderar esse processo. Mas, como se diz, sonhar não custa nada.
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