Arte coluna Nuno 14 julho 2024Arte Paulo Márcio
Publicado 14/07/2024 00:00
O povo brasileiro, isso não é segredo, anda cada vez menos interessado pela política — e tem recebido as palavras e os atos de quem ocupa cargos públicos com uma desconfiança que parece aumentar a cada dia. Prova disso são os índices crescentes de abstenções nas eleições mais recentes. Mesmo num país em que o voto é obrigatório e o não comparecimento sem justificativa pode render sanções aos faltosos, a quantidade de eleitores que não se dão ao trabalho de se apresentar diante das urnas tem aumentado de eleição em eleição.
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No pleito de 2006, só para lembrar, pouco mais de 16 em cada 100 eleitores cadastrados junto ao TSE deixaram de comparecer às urnas. Em 2022, o número chegou a quase 21 para cada 100 eleitores. Se a abstenção continuar aumentando no mesmo ritmo, logo as eleições obrigatórias do Brasil registrarão um número de ausências semelhante ao que se vê em países em que o voto é facultativo.
Dados como esses despertam a tentação quase inevitável de culpar o eleitor e sua indiferença crescente em relação à escolha de quem irá governá-lo ou representá-lo no Parlamento por tudo de ruim que existe no sistema político brasileiro. É como se a omissão do cidadão na hora de votar fosse a principal responsável pela péssima qualidade de políticos que, no exercício de seus mandatos, agem como se não precisassem seguir as leis que eles mesmos fazem.
Ou pelos atos de políticos que, uma vez de posse do poder de tomar decisões que afetam a vida de todos, passam a agir como se estivessem ali para serem servidos e se comportam como se a única utilidade do aparato estatal fosse atender a seus interesses. Ou pelas ações de políticos que não demonstram o menor pudor na hora de elaborar leis que descaradamente os beneficiam — sem dar a mínima importância ao juízo que a sociedade fará de suas atitudes. Diante disso, é o caso de se perguntar: de quem é a culpa? Do eleitor que se afasta cada vez mais do processo político ou dos políticos que não tomam atitudes capazes de atrair a confiança e o respeito do eleitor?
Um exemplo eloquente da falta de apreço dos políticos pelo cumprimento das leis que eles mesmos aprovaram e da facilidade com que legislam em seu próprio benefício foi dado pela Câmara dos Deputados na quinta-feira da semana passada. A toque de caixa, a Casa aprovou a Proposta de Emenda Constitucional 9/2023 — levada a plenário por decisão do presidente Arthur Lira (PP/AL) sem sequer ter sido apreciada pela comissão que deveria analisá-la.
A ideia do projeto é anistiar os partidos políticos pelo descumprimento da norma que estabelece cotas por gênero e por raça na definição das chapas inscritas para disputar as eleições. Foram os próprios congressistas que aprovaram a criação dessas cotas, ainda nos anos 1990. A partir de 2018, decisões do Superior Tribunal Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal entenderam que as campanhas eleitorais de mulheres e de pessoas pretas teriam direito a 30% dos bilhões de reais que os partidos tomam do contribuinte para se financiar.
A PEC aprovada livra os partidos de todas as multas e sanções que pesavam contra eles na Justiça. De acordo com um levantamento feito pelo grupo Transparência Partidária, o valor corrigido das multas pode chegar a exagerados R$ 23 bilhões. Detalhe. A norma anterior proibia que as multas contra os partidos fossem quitadas com o dinheiro público do fundo eleitoral. Agora, isso está liberado.

DIVERGÊNCIAS INSOLÚVEIS — O mínimo que se pode dizer do texto é que ele é despudorado em sua intenção de livrar os políticos de punições pelo descumprimento da lei. Além de reforçar a imunidade tributária dos partidos, ele cria um programa de refinanciamento para lá de camarada, destinado ao pagamento das dívidas acumuladas pelas legendas ao longo dos anos. As contas penduradas, para início de conversa, ficam isentas de quaisquer multas ou juros. Elas serão corrigidas apenas pela inflação e pagas ao longo de 180 suaves prestações. Ou seja: 15 anos!
Calma! Ainda não acabou. Para pagar essas contas, a lei traz de volta uma prática que parecia banida da política brasileira: a possibilidade de pessoas jurídicas fazerem doações a partidos políticos. Está escrito ali, com todas as letras: “Fica permitida a arrecadação de recursos de pessoas jurídicas por partido político, em qualquer instância, para quitar dívidas com fornecedores contraídas ou assumidas até agosto de 2015”.
As justificativas para essa pouca vergonha são as mais singelas possíveis. O texto diz: “Muitos dos entes partidários tiveram dificuldade em se ajustar ao novo comando constitucional (que fixou o volume de recursos a ser destinado às campanhas das mulheres e das pessoas pretas), em decorrência da inexistência de outra regra que apresentasse as balizas ou uma maior elucidação sobre a matéria pertinente à distribuição das referidas cotas. Não se sabia ao certo, em meio ao processo eleitoral, se a contagem da regra teria sua abrangência federal ou se deveria ser cumprida pelos partidos em âmbito nacional”. Se alguém souber explicar a dúvida que pode existir entre “abrangência federal” e “âmbito nacional”, por favor, nos ajude a esclarecer.
E mais: “Muitos partidos, agindo de boa-fé e com o maior esforço para que as regras fossem cumpridas, se viram inadequados após o período eleitoral, em virtude de muitas alterações de registro de candidatura em todo o país”. Tudo bem: os deputados não precisavam convencer ninguém, a não ser eles mesmos, dos motivos que os levaram a se anistiar das penalidades que os levaram a infringir uma lei que, na origem, tinha sido aprovada por eles. Mas falar em “boa-fé” numa circunstância como essa, sinceramente, soa como zombaria aos cidadãos deste país.
A desculpas apresentadas acima não fazem o menor sentido. Qualquer cidadão é sempre obrigado a cumprir as leis baixadas pelo Congresso, ainda que seja prejudicado por elas ou que seja surpreendido por mudanças decididas de cima para baixo. Isso vale, também, para as pessoas e para as empresas. Só não vale para os políticos que tiveram, pelo que está escrito, “dificuldade em se ajustar ao novo comando constitucional” que eles mesmos votaram.
E tem mais! Todo mundo sabe que a política brasileira virou um poço de polarização e que a esquerda e a direita ficam o tempo todo trocando acusações sobre a responsabilidade pelos problemas do país. Mas na hora de livrar os partidos das penalidades a que estavam sujeitos por terem descumprido uma lei que seus próprios integrantes votaram, não existem divergências. Isso fica claro quando se observa os nomes e os partidos dos cento e tantos deputados que assinam como autores da PEC 9/2023. Quase todos os partidos com representação na Casa estão ali. No hora de buscar esse tipo de vantagem, até adversários radicais, como o PT e o PL são capazes de ficar no mesmo lado...
Além do consenso que se manifesta em torno de pouquíssimas matérias, um outro ponto impressiona nessa história: a rapidez com que a decisão foi tomada. Numa única noite, o texto passou por dois turnos de votação na Câmara, sem que fosse observado o intervalo que o regimento prevê entre o primeiro (que terminou com o placar de 344 a 89 votos) e o segundo escrutínio (em que o texto foi aprovado por 338 a 83). Apenas essa pressa já é suficiente para comprovar que a autoanistia já estava decidida antes mesmo de ter sido levada à votação e que toda a consulta ao plenário não passou de uma encenação feita na tentativa de dar legitimidade ao processo.
É preciso deixar claro que, na hora da votação, a bancada do partido Novo se posicionou contra o texto. O PSOL também se manifestou contrário à ideia, mesmo tendo um de seus integrantes, o deputado Chico Alencar, do Rio, entre os autores da PEC. No mais, o resultado da votação deixou claro que, quando se trata de defender os próprios interesses, não existem divergências insolúveis nem barreiras ideológicas intransponíveis a separar os políticos brasileiros. Nessa hora, todos se dão as mãos e formam uma corrente que arrasta tudo o que encontra pela frente! É triste admitir, mas essa tem sido a tônica da política brasileira.

FÉRIAS DE MENTIRINHA — Para entrar em vigor, a PEC ainda precisa ser aprovada pelo Senado. Por se tratar de uma Proposta de Emeda à Constituição — e não de uma lei ordinária — ela não precisa ser submetida à sanção do presidente da República. Sendo assim, não está sujeita a veto presidencial.
Na sexta-feira, numa entrevista em São Paulo, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD/MG) quis se esquivar da discussão — que, querendo ou não, é embaraçosa para todos os políticos — e disse que não tem compromisso com a urgência na votação da autoanistia. Mas, com todo respeito, imaginar que Pacheco tenha uma atitude de estadista e que ele se disponha a impedir a tramitação de uma matéria como essa seria esperar muito de um político que, desde que assumiu a presidência do Senado, tem se mostrado incapaz de qualquer gesto de grandeza em defesa da sociedade.
É pouco provável, portanto, que a decisão tomada na Câmara venha a ser alterada pelos senadores. Afinal, tanto quanto os deputados, eles têm interesse em livrar as legendas a que são filiados das multas que, no final das contas, significaria transferir para os cofres da Justiça Eleitoral uma parte do dinheiro público que eles faturam a título de Fundo Partidário e de Fundo Eleitoral. Assim como aconteceu na Câmara, o mais provável é que a questão fique hibernando na comissão encarregada de analisá-la e que, de uma hora para outra, saia de lá para ser posta em votação na calada de uma noite qualquer, sem que a sociedade sequer tenha tempo de entender o que está acontecendo.
A votação da PEC 9/2023 apenas escancara um procedimento que vem se manifestando em diversos momentos da atividade política no Brasil. Tem sido cada vez mais comum que os políticos se beneficiem das decisões que eles mesmos tomam ou que encontrem formas cada vez menos criativas de burlar as normas que deveriam orientar sua conduta. Nesse sentido, o próprio recesso de meio de ano que eles estão se dando a partir desta semana pode ser tomado como exemplo.
A rigor, os deputados e os senadores não poderiam estar saindo de férias neste momento. Pelo que diz a norma baixada pelo próprio Poder Legislativo, o recesso parlamentar de 15 dias no meio do ano só pode ser concedido depois da aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias — LDO — que orientará os gastos públicos do ano seguinte. Essa foi a maneira encontrada, anos atrás, de se obrigar o Congresso a tomar uma decisão que, se não houvesse a obrigatoriedade, seria postergada até o último minuto.
Os parlamentares, porém, não estão nem aí para essa formalidade. Para contornar a obrigatoriedade, eles não assumem que estão saindo de férias. Eles não darão expediente nos próximos 15 dias, mas, para todos os efeitos, é como se estivessem trabalhando. Depois de agosto, quando a LDO for votada, é que eles sairão oficialmente de férias.

ABUSO DE PRERROGATIVA — Atenção! Atitudes como essas não se limitam ao Poder Legislativo e, infelizmente, têm sido uma prática recorrente não só dos políticos brasileiros, mas também dos integrantes dos outros poderes. O Judiciário, por exemplo, é pródigo em criar artimanhas que multiplicam os salários dos magistrados para limites muito superiores ao teto constitucional.
Por eles, os salários de qualquer servidor público, incluindo benefícios, não pode ultrapassar os vencimentos de um ministro do Supremo Tribunal Federal, que atualmente é de R$ 46.366. De acordo com um levantamento feito no ano passado com base em dados divulgados pelos próprios Tribunais de Justiça do país, mais da metade dos magistrados brasileiros recebem remunerações muito acima desse limite.
No caso do Poder Executivo, o problema é de outra natureza. Para começar, parece ser cada vez maior a distância que separa aquilo que é prometido durante as campanhas eleitorais e as decisões que são tomadas no exercício do mandato. Também são frequentes, ali, os casos em que políticos abusam da prerrogativa de usar o poder conferido pelos cargos que ocupam em proveito de seus próprios interesses.
É sempre bom deixar claro que ninguém aqui está falando que os políticos de esquerda caem mais em tentação do que a turma da direita. O que está sendo discutido aqui é algo que parece pairar acima das ideologias, dos partidos ou da trajetória percorrida pelos políticos de um modo geral.
A política é extremamente importante e quanto mais a sociedade se sentir estimulada a participar do processo, melhor. Mas, quanto mais o Congresso Nacional continuar aprovando medidas que beneficiam seus próprios integrantes, enquanto a sociedade se mata de trabalhar para manter suas obrigações em dia, a descrença aumentará e a política corre o risco de se tornar apenas um retrato na parede. É preciso evitar que isso aconteça.
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