Nuno1setARTE KIKO
Publicado 01/09/2024 00:00
Na medida em que o dia 5 de novembro se aproxima e a campanha para as eleições que apontarão o próximo morador da Casa Branca chega perto do desfecho, a política dos Estados Unidos passa a atrair o interesse de um número maior de pessoas no Brasil. Em alguns casos, mais interesse até mesmo do que as eleições municipais brasileiras, que acontecerão um mês antes. As preferências se dividem entre Democratas e Republicanos e, não é raro, o ardor da discussão faz lembrar as divergências sobre as preferências políticas que provocam brigas entre a esquerda e a direita no Brasil.
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Independente, porém, do que as urnas norte-americanas venham a mostrar no momento em que forem abertas, um ponto precisa ficar claro. Naquilo que realmente interessa, nenhum resultado deve gerar mudanças significativas no relacionamento do Brasil com os Estados Unidos. Vença quem vencer, tudo tende a permanecer mais ou menos como tem estado nos últimos anos.
Isso mesmo! Por maior que seja a importância dos Estados Unidos no mundo, por maiores que sejam os laços comerciais históricos entre os dois países e por mais acentuada que pode ser a guinada na política externa norte-americana depois que Joe Biden deixar a presidência, tudo continuará como antes depois das eleições. E mais: no que diz respeito às relações entre os dois países e aos benefícios que o Brasil pode tirar de uma maior proximidade com os Estados Unidos, não haverá diferenças significativas caso o próximo presidente da maior potência do mundo seja a vice-presidente Kamala Harris, que concorre pelo Partido Democrata, ou o candidato do Partido Republicano, o ex-presidente Donald Trump.
É bom bater nessa tecla: seja uma, seja o outro, tudo tende a permanecer exatamente como é hoje, sem expectativa de maiores mudanças. E isso, convenhamos, é lamentável. Brasil e Estados Unidos, que no passado chegaram a ser aliados próximos, hoje estão mais afastados do que deveriam. A situação tende a permanecer assim e quem mais perde com esse afastamento é o Brasil.
O país teria muito a ganhar caso aproveitasse a oportunidade proporcionada pela troca de presidente para iniciar uma jornada de negociações que, se for bem-sucedida, pode resultar numa reaproximação com os Estados Unidos. Seria muito positivo se houvesse, por parte de nossa diplomacia, disposição para discutir e superar as divergências (principalmente as motivadas por picuinhas ideológicas) acumuladas nos últimos anos, aparar as arestas que se formaram e estabelecer um novo padrão de relacionamento baseado nos benefícios que essa proximidade pode oferecer para um e para o outro.
Não! Ninguém está propondo aqui a volta do tempo em que os governos brasileiros, quase sempre movidos pela falta de dinheiro para investimentos, se submetiam a uma postura de inferioridade em relação aos Estados Unidos. Em 1964, numa resposta descuidada a um repórter, o ex-governador da Bahia Juracy Magalhães, que havia acabado de receber do marechal Castello Branco a nomeação para a embaixada do Brasil em Washington, disse uma frase que acabaria por se transformar na mais pura expressão da subserviência brasileira em relação ao governo norte-americano. “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”, disse Magalhães.
É claro que não é e nunca foi assim. Os dois países, que mantêm relações diplomáticas ininterruptas desde o dia 24 de maio de 1824, têm diferenças históricas, econômicas e culturais que precisam ser consideradas em qualquer negociação. Ao longo desses 200 anos de relacionamento, os dois sempre tiveram interesses específicos. Mesmo nos momentos de maior proximidade, havia divergências a serem levadas em conta no diálogo.
Foi assim, por exemplo, nas negociações que aproximaram o Brasil dos Estados Unidos em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial. O resultado mais visível e duradouro da aliança fechada naquele momento foi a instalação da primeira grande siderúrgica brasileira, a CSN, em Volta Redonda, e outras vantagens comerciais.

SONHO DISTANTE — A situação atual é outra. Seria proveitoso, para dar apenas um exemplo apressado daquilo que o Brasil pode ganhar caso decida propor um diálogo de reaproximação com os Estados Unidos, que o país usasse o momento para dar início a negociações que resultassem num programa de cooperação capaz de assegurar, por exemplo, acesso à tecnologia produzida pelas universidades e centros de pesquisas norte-americanos. Um acordo como esse poderia abranger áreas como tecnologia da informação, novos materiais, geração e transmissão de eletricidade, engenharia e outros campos do conhecimento em que, admitam ou não os mais ufanistas, os Estados Unidos estão quilômetros à frente do Brasil.
Na mesma linha, seria bom se o governo brasileiro, ao invés de insistir em gestos de desafio que servem apenas para aumentar a distância que tem separado os dois países nos últimos anos, desse início a um processo gradual de distensão de suas relações com os Estados Unidos. Seria importante que a competência que ainda deve existir no corpo diplomático do Itamaraty (cada vez mais orientado pela ideologia de esquerda) fosse posta a serviço da negociação de acordos comerciais que sejam realmente vantajosos para o país.
Se isso acontecesse, o Brasil estaria no melhor dos mundos. Infelizmente, porém a hipótese de que o governo tome providências nessa direção não passa de um sonho distante. Sendo assim, o melhor a fazer é voltar à realidade e falar das eleições.

RECEITA DE BOLO — A campanha eleitoral prossegue por lá e, como sempre acontece nesses momentos, desperta paixões que nem sempre permitem uma análise mais serena dos fatos. Conforme mostram os levantamentos mais recentes, os ventos neste momento sopram a favor da candidata do Partido Democrata. Uma pesquisa feita pela Agência Reuters e pelo instituto Ipsos, divulgada na semana passada, aponta Kamala com 45% das intenções de voto e Trump com 41%.
A diferença é mínima, mas é bom não se esquecer de que até alguns dias atrás Trump aparecia como franco favorito na disputa então travada com o presidente Joe Biden. Bastou que o adversário fosse substituído e que a aparente fragilidade demonstrada por Biden desse lugar à energia desafiadora de Kamala para que os ventos mudassem a direção.
É daí que surgem as opiniões a respeito do futuro das relações entre os dois países. Muita gente considera a eventual vitória de Kamala Harris um sinal de que poderá haver mudanças no relacionamento entre os dois países. A candidata, embora seja do mesmo partido de Biden, aparenta ter uma linha de conduta mais, digamos assim, à esquerda do atual presidente. Não seria razoável, portanto, esperar que haja nas relações do Brasil com os Estados Unidos uma alteração de rota que levou ao atual distanciamento?
O que aconteceria se, ao invés de ser chefiado por um presidente protocolar e pouco inovador, como é o caso de Biden, o governo norte-americano passasse a ser comandado por uma mulher que defende pontos de vista simpáticos à agenda do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva? Isso não seria um elemento suficiente para provocar uma mudança para melhor nas relações entre os dois países?
Algumas pessoas, que enxergam as relações internacionais como uma receita de bolo, acham que, no cenário atual, uma eventual vitória de Kamala traria benefícios ao Planalto. Afinal, a simpatia que os democratas despertam na esquerda latino-americana seria, por esse ponto de vista, razão suficiente para facilitar o entendimento e proporcionar acordos vantajosos entre os dois países. Será que isso procede? Não! E se Trump ganhar? Será que a posição francamente conservadora já demonstrada pelo republicano contribuirá para piorar ainda mais o relacionamento tíbio que o atual governo do Brasil mantém com os Estados Unidos? Também não!
Na verdade, qualquer possibilidade motivada por afinidades como essas simplesmente não existe quando o que está em jogo são decisões de Estado, não de governo. A simpatia recíproca que havia entre Trump e o ex-presidente Jair Bolsonaro não gerou mais do que acordos protocolares e benefícios superficiais ao Brasil dentre 2019 e 2020, período em que seus mandatos coincidiram nas presidências dos dois países.
Da mesma forma, as eventuais afinidades que certamente existem entre as posições de Lula e Kamala não serão capazes de remover o entulho diplomático que, nos últimos anos, contribuiu para dificultar as relações do Brasil com os Estados Unidos. Esse entulho é considerável. Pode-se dizer que essas relações entre os dois países atravessam nos dias atuais um dos períodos de maior distanciamento desde que o presidente James Monroe, em 1824, recebeu o encarregado de negócios brasileiro, José Silvestre Rebello, em Washington, no ato que marcou o reconhecimento da independência do Brasil pelos Estados Unidos.

AFINIDADES IDEOLÓGICAS — O maior problema em torno dessa situação é que, desde que o presidente Lula assumiu seu primeiro mandato, no já distante ano de 2003, a diplomacia no Brasil deixou de ser assunto de Estado — em que os interesses comerciais, estratégicos e geopolíticos orientam o relacionamento com os parceiros. De lá para cá, ela foi reduzida a uma agenda de governo baseada em interesses político-ideológicos de curto prazo. Ou nem isso. Quem reparar direito notará que a agenda da diplomacia brasileira é orientada única e tão somente pelas afinidades ideológicas do partido do presidente da República, o PT, com governantes de países que adotam o credo da esquerda.
A mudança de conduta positiva verificada durante a breve passagem de Michel Temer pelo Planalto e de José Serra pelo Itamaraty não foi suficiente para deixar uma marca duradoura na conduta do corpo diplomático. Veio o governo de Bolsonaro e, com ele, uma mudança de orientação que levou a uma alteração de rumo, mas não de postura. Explica-se: assim como os governos petistas alinham os interesses do Brasil ao das piores ditaduras de esquerda do mundo, o governo Bolsonaro fez a mesma coisa. Só que os aliados passaram a ser os governos de direita. Simples assim.
A marca mais visível nesse processo foi a mudança da posição do Brasil em relação a Israel. Sob Bolsonaro, os dois países ensaiaram uma aproximação que poderia ter rendido benefícios mais profundos para o Brasil caso não tivesse se assentado apenas nas afinidades ideológicas e na admiração do presidente brasileiro pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Poderia ter havido, por exemplo, acordos capazes de avançar no rumo da contribuição israelense para a solução dos crônicos problemas de escassez de água no semiárido Nordestino.
Mas tudo, no final das contas, parece ter se resumido ao envio de militares de Israel para colaborar no resgate das vítimas do acidente de Brumadinho, em janeiro de 2019. Sob Lula, o que era simpatia se transformou numa antipatia que desafia o bom senso — a ponto da condenação do governo brasileiro aos ataques terroristas em Israel, no ano passado, logo ter se transformado em manifestações de simpatia aos agressores. No final da história, os estupros, as degolas, os assassinatos de crianças e os sequestros cometidos por eles no dia 7 de outubro foram relevados em nome da simpatia da esquerda brasileira aos grupos que defendem os terroristas que, em nome da defesa da causa palestina, querem apenas a destruição de Israel.
A propósito, na semana passada, Kamala Harris declarou que, caso vença as eleições, manterá o apoio histórico, inclusive militar, que os Estados Unidos sempre deram a Israel. Será que isso influenciará a posição do governo brasileiro em relação a sua administração, caso ela vença a disputa? Tomara que não.
Seria bom que a partir de agora, o governo brasileiro deixasse de se orientar por questões como essa e conduzisse sua diplomacia de olho apenas nos interesses nacionais do longo prazo—e não de eventuais simpatias de ocasião. Qualquer pessoa com um mínimo de informação sobre o que acontece no interior do Itamaraty sabe que isso é muito difícil. Ocorre, porém, que, mais cedo ou mais tarde, o Brasil terá que escolher seu lado de uma vez por todas. E tomara, quando isso acontecer, que ele opte por ficar do lado das grandes democracias do mundo. Especialmente a dos Estados Unidos.
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