Rio - A semana que passou foi marcada por uma revelação esperada há muito tempo: a famigerada ‘lista do Fachin’, com os nomes das autoridades que serão alvos de inquérito no Supremo Tribunal Federal e em outras instâncias da Justiça.
O impacto maior, no entanto, foi reservado para os vídeos dos depoimentos de delação dos executivos da Odebrecht. Com a naturalidade de quem conta no almoço o que fez de manhã, os empreiteiros narram como funcionava por dentro uma engrenagem corrupta na qual todos os grandes partidos brasileiros e muitas das principais lideranças se movimentavam.
Para a população, restava o papel de pagar a conta de obras superfaturadas para bancar propina ou Caixa 2. “A forma como eles falam de milhões destinados à corrupção, como se fosse coisa corriqueira, cotidiana, tem o efeito de tornar os fatos ainda mais contundentes”, diz o cientista político Jairo Nicolau.
Professor da UFRJ, Nicolau acompanha o cenário político há 30 anos e é um dos maiores especialistas em sistemas eleitorais do país. Para ele, o que veio com os vídeos foi “um tsunami que afeta o sistema partidário de um modo geral”.
Lançando um olhar no futuro, ele acredita que teremos no próximo ano a maior renovação de lideranças e forças partidárias desde a redemocratização e aposta no enfraquecimento das três forças que dominaram a política brasileira nos últimos 30 anos: o PT, o PSDB e o PMDB. “Para as velhas lideranças, acabou”.
Já o cientista social Marcus Ianoni (UFF) não aposta num cenário de escombros para a estutura partidária atual. Considerando o cenário instável demais para certezas, ele reduz a importância da emergência da direita — “Os conservadores não têm partidos políticos estruturados, nem lideranças, e têm se expressado através de nomes novos, como Doria, ou velhos autoritários, como Bolsonaro — e adverte: “O PT está golpeado, mas não destruído, o rumo desse partido é fundamental”.
Sobre as mudanças eleitorais, os dois discordam totalmente. Ianoni defende voto em lista fechada e mais financiamento público para as eleições. Nicolau acha que não há espaço para essas mudanças, que seriam lidas hoje como trapaça.
O DIA: Alguma surpresa com o que vimos na semana passada?
Jairo Nicolau: Eu já esperava perder da Alemanha. Mas o que está vindo é uma derrota por atacado, mais que 7 a 1. É um tsunami que afeta o sistema partidário de um modo geral. Aquela coisa de identificar os partidos como times de futebol mostra um desprezo total da Odebrecht pelas instituições. Acho que não é o caso de falarmos de personagens, de quem sobrevive até 2018. É todo um sistema que se transformou em escombros.
Enquanto isso, tem uma Reforma Política em discussão no Congresso. Podemos esperar alguma mudança vindo daí?
Os deputados não vão conseguir fazer mudanças muito profundas nas regras eleitorais. A eleição de 2018 vai acontecer, basicamente com as regras atuais. Veja que até o relator (o petista Vicente Cândido) que propôs mudanças como lista fechada e mais dinheiro para os partidos está envolvido nas delações, o que tira ainda mais a legitimidade dessa comissão, que já vinha em baixa.
Então, o que nos aguarda em 2018, depois de três anos tão ruins?
- 'Bancada ética' aparece na lista de Fachin
- Esplanada: Julgamento no STF do caso Odebrecht pode durar mais de cinco anos
- Laptop de diretor da área de propina da Odebrecht foi jogado no mar de Miami
- Odebrecht pagou R$ 5,1 mi em propina para a transposição do São Francisco
- Número de investigados no Supremo sobe para 195 após delações da Odebrecht
- Dilma se defende: 'O senhor Marcelo Odebrecht faltou com a verdade'
- Ex-presidente do Peru nega acusação de caixa dois da Odebrecht
- Esquema da Odebrecht repassou cerca de R$ 450 milhões para políticos
- Mantega pediu R$ 57 mi para comprar apoio de legendas, afirmou Odebrecht
- Delação aponta que Collor recebeu R$800 mil em propina da Odebrecht
- Citações da Odebrecht contra Lula, Dilma e FHC vão para primeira instância
- Fachin autoriza 76 inquéritos contra políticos citados em delações da Odebrecht
O grande diferencial vai ser o fato de que a maior parte desses atores que operam a política brasileira há décadas vão esta fora do páreo. Eles não vão conseguir sobreviver politicamente, ou poderão até já estarem sentenciados, impedidos legalmente de participar de eleições.
Não é cedo pra dizer isso?
Não, eles certamente vão estar carimbados. O Eduardo Cunha foi o terceiro deputado federal mais votado do Rio em 2014. Ele agora está preso. E, claro, fora de qualquer perspectiva para 2018.
E o que está vindo no lugar deles?
Nós vamos ter a maior renovação da história das eleições brasileiras. Vai ter muita gente nova. Lembro que vai ser a primeira eleição geral sem financiamento corporativo. Isso deve tornar a campanha mais competitiva e abrir espaço para pessoas menos endinheirada tentarem a sorte.
Não posso dizer que vai ser uma mudança necessariamente qualitativa. Mas vamos ter uma certa limpeza. As pessoas que operavam esse sistema vão ser varridas. E nós vamos ter a emergência de novas forças políticas.
Com novas forças, você se refere a pessoas, partidos, movimentos?
Não temos ainda um movimento cívico capaz de se transformar numa estrutura partidária, como aconteceu na Europa, para substituir os partidos. Mas, independente de nomes, PSDB, PT e PMDB vão encolher. Não vão acabar, mas perder relevância. Não vejo forças políticas capazes de ocupar esse lugar a curto prazo.
Com partidos fracos, as forças políticas vão se organizar mais ainda em torno de nomes, é isso?
A gente vai ter a ascensão de algumas figuras. Mas Bolsonaro tem capacidade de organizar um campo conservador no Brasil? Não acredito. Marina vai conseguir sair do estado embrionário da Rede e retomar uma agenda política de centro-esquerda que incorpore a classe média? O Ciro? Um candidato do Psol? Doria poderia se desfiliar do PSDB, se desvincular de forças tradicionais. Está tudo em aberto por enquanto. O quadro vai se redesenhar nos próximos meses.
Os evangélicos também vêm ocupando espaço. Não podem ser uma influência decisiva diante do vazio de lideranças?
Eles não são uma força compacta. E eu vejo um interesse deles mais nas pautas legislativas, ligadas a questões comportamentais. Não há um somatório de forças capaz de conquistar a presidência, ou criar um partido que junte todas as denominações. Nesse cenário de fragmentação, eles vãos e beneficiar, porque fazem campanhas relativamente baratas, de um fiel para outro. Mas eles não são monolíticos, também disputam fiéis.
Para os partidos atuais, você não vê saída?
Pode haver uma renovação dos partidos,como o PT, a partir de uma militância forte, mas é difícil apostar nisso.Veja a situação de quem está no PT hoje. Vai contar com um movimento de limpeza? Talvez fosse melhor tentar organizar um novo partido, ou povoar um outra legenda do campo da esquerda. Vamos ter um rearranjo a partir da avaliação do tamanho do estrago, que, na minha visão, foi enorme.
Mas, e se vier o tal acordão, que algumas lideranças estariam articulando para livrar acusados de Caixa 2 e tentar dar sobrevida aos políticos atingidos pelas delações ?
Olha, acontece muita coisa de madrugada no Congresso. Mas essa nova sociedade brasileira, surgida nesses últimos três anos e que se expressa, seja pela rua, seja pelas redes sociais, está em um estado de hipervigilância cidadã. A nova imprensa, que não é só mais a escrita, que tem vários canais, está pronta para reagir. Há uma classe média que está acompanhando política de um jeito que nunca acompanhou.
Tem gente do Brasil profundo vendo o que acontece pelos canais de notícias e pela internet em tempo real. Então, acho q não há espaço para esse tipo de manobra. A elite política vai buscar acordos de sobrevivência, é certo. Coisas como a lista fechada. Mas não vão enganar o leitor. Uma tentativa mais aberta de acordão poderia levar o país a uma situação de insubordinação, de sublevação mais grave ainda do que a gente viu até agora. Seja pela direita ou pela esquerda, muita gente tem ido à rua. Isso tem sido demonstrado em várias oportunidades. Então, eu não apostaria muito nessa possibilidade.
O DIA: O que mudou com a divulgação das delações da Odebrecht?
Marcus Ianoni: Ficou claro para o público que ainda não sabia que o financiamento empresarial de campanhas eleitorais era a principal porta de entrada da corrupção e um modus operandi de todo o sistema político-eleitoral, e não exclusivo de um partido. A PGR e o STF precisam ter sabedoria para lidar com isso.
Uma coisa é caixa 2; outra é propina. Não dá para destruir um sistema político e, junto com ele, a economia do país sem que a perspectiva de um compromisso para que aquilo que fazia parte dos usos e costumes deixe de fazê-lo daqui para a frente. Tem que haver combate às irregularidades, sem a destruição do país.
A eleição de 2018 vai levar à superação da crise?
O cenário é muito instável. Há até temores, de certa forma justificáveis, sobre se realmente haverá eleições em 2018. Uma grande questão em jogo é se Lula será candidato. Há uma clara vontade política do sistema jurídico-repressivo de condenar Lula. Outra questão é se, com a desmoralização das principais lideranças políticas, surgirá um aventureiro, como foi o caso de Collor em 1989.
O sistema político perdeu a validade?
A Reforma Política é fundamental. Dilma havia proposto um plebiscito ou referendo para ver se a população queria uma Constituinte da Reforma Política. O PMDB e a oposição de então não aceitaram. É fundamental manter o financiamento empresarial fora das campanhas e fortalecer os partidos com a lista fechada, que podem viabilizar o financiamento público. A democracia é de interesse público, vale a pena avançar nesse tema.