Rio - A história da Globo, que completa 50 anos no próximo domingo, quase se confunde com a trajetória de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, o ex-todo-poderoso da emissora. Depois de passar por Tupi e Excelsior, ele chegou em 1967 à tevê da família Marinho, onde criou uma programação bem-sucedida. Das cinco décadas da Globo, Boni sente orgulho de ter participado de 31 anos. Quando deixou o cargo de vice-presidente de Operações, no fim de 1998, para virar consultor, ele custou a assimilar o golpe.
“Me senti meio que perdendo um filho”, confessa. Hoje, ele ainda assiste à programação do canal com olhar crítico. “Falta à Globo uma certa personalidade”, afirma. Ao avaliar os principais astros, ele conta que faria com que Faustão falasse menos no programa e comenta a saída de Xuxa. “Ela não vai conseguir fazer sucesso na Record”, aposta.
APRESENTADORES
Para Boni, artista que não rende mais nem dá audiência como antes deve ficar numa espécie de reserva técnica da Globo, fazendo participações em programas fixos da grade e estrelando especiais uma vez por ano. Ele diz não saber detalhes da saída de Xuxa, mas acredita que foi um mau negócio para ela e para a emissora. “Acho que ela fez uma besteira. Não vai conseguir brigar com a Globo. Se não estava dando audiência na Globo, com todo o poderio da emissora, como ela vai dar audiência na Record? Não vai conseguir fazer sucesso e vai sofrer um desgaste”, prevê. “Difícil a Record arranjar um bom conteúdo para ela”, completa.
Boni diz que Xuxa poderia ter continuado na Globo, seguindo o modelo que ele, antes de deixar o cargo, acertou, por exemplo, com Renato Aragão, que apresenta o ‘Criança Esperança’ e protagoniza especiais de fim de ano. “Não precisa ficar até o fim da carreira. Ele não podia continuar fazendo programa levando bofetada e caindo de cadeira”, avalia.
O ex-todo-poderoso considera Fausto Silva, Ana Maria Braga e Luciano Huck grandes vendedores de produtos. “O que eles anunciam vende. Mas o que fazer com eles em matéria de conteúdo? O problema é conteúdo”, analisa. No caso de Faustão, Boni conta que faria com que o apresentador falasse menos no ‘Domingão’. “Largar o cara apresentando ao vivo um programa de três horas é um desgaste. Eu arranjaria mais produção, para que ele aparecesse menos e o programa não dependesse tanto dele”, adianta.
NOVELAS
Boni classifica como “uma bobagem” a polêmica em torno do beijo gay das personagens de Fernanda Montenegro e Nathália Timberg em ‘Babilônia’. “As novelas não funcionam ou deixam de funcionar por causa disso. É uma reação passageira. O que determina o sucesso é se a trama está correta ou não”, ensina ele. “Se eu soubesse que o público ia acompanhar a história com interesse, eu não vetaria beijo gay.”
Para a trama ser bem-sucedida, ele diz que a história tem que ser boa e existir um equilíbrio de forças entre vilões e herói (heroína). “A mocinha tem que ser frágil, para que o público possa torcer por ela. Não pode ser tão forte como o vilão.” Desde o início, Boni sabia que as novelas dariam certo e diz que a contratação de Janete Clair no fim dos anos 60 foi fundamental. “Ela criou histórias mais realistas e brasileiras, trouxe um formato e padrão que todo mundo seguiu depois.”
Quando percebia algo errado numa novela, agia rápido e mudava tudo em uma semana, como a Globo fez com ‘Babilônia’. “Fizemos isso em ‘O Dono do Mundo’, foi difícil consertar”, lembra.
FUTEBOL
O futebol da Globo não tem sido motivo de alegria para Boni. Apesar de adorar o esporte, ele afirma que não aguenta mais os jogos de toda quarta-feira, por causa da repetição e da baixa qualidade do espetáculo. “A Globo devia continuar perseguindo a questão de fazer uma TV brasileira sem defeitos, sem repetição e sem concessões. Ela não pode transmitir esse futebol chinfrim como obrigação comercial. Podia ser um pouco menos comercial e voltar a ser mais artística”, critica o ex-diretor. “Não acabaria com o futebol, não! Mas só transmitiria jogo bom. Esse de quarta-feira mata!”
JORNALISMO
Um dos maiores orgulhos de Boni é o ‘Jornal Nacional’. “Conseguimos criar um telejornal com informação para o país todo, ao vivo. Era um desafio muito grande e um projeto polêmico, porque havia várias maneiras de implantar. Mas não inventamos o modelo, copiamos o da TV americana, que já estava no ar há mais de 20 anos”, conta. “Assisto ao ‘JN’ hoje sempre com olhar crítico. Mas minha paixão na TV é o jornalismo, é o que vai manter a TV aberta funcionando.”
Boni admite que um dos grandes erros foi a cobertura da campanha ‘Diretas Já’ e a edição do debate entre Lula e Collor. “Cobrimos o comício de São Paulo (sem dizer que era a campanha das Diretas) e não continuamos no ‘JN’, porque depois tinha novela. No debate do Collor e Lula, o ‘Jornal Hoje’ fez uma edição favorável ao Lula, e o ‘JN’ foi a favor do Collor a pedido do doutor Roberto. Mas isso não interferiu na eleição”, diz.
CONCORRENTES
Apesar de algumas ressalvas, Boni aponta a Globo como a melhor emissora do país, sem concorrente em programação e qualidade. “Ela faz uma ótima televisão e ponto final. O resto não faz. Segue a linha da mesmice. Acho uma pena que a Globo tenha eliminado esses programas que iam ao ar uma vez por mês, como o ‘Casseta & Planeta’, baseado numa fórmula econômica”, diz. “SBT e Record se dão por satisfeitos com o que fazem”, completa.
Boni destaca o excesso de exposição no horário nobre. “O ‘Jornal Nacional’ hoje está com 40 minutos, antigamente era 30. A novela tem uma hora de duração, antes era 40. O horário nobre da TV está com uma hora e 40 minutos, ocupado apenas por dois programas. Isso aí significa exposição das pessoas”, diz ele, que defende o descanso para os artistas de toda a programação.
“A televisão é uma máquina que consome o talento das pessoas que estão no vídeo. A preocupação em preservar atores, apresentadores, diretores e autores deve ser constante. É um desgaste brutal”, frisa.
PROGRAMAÇÃO
Nos primeiros anos na Globo, Boni não recebia salário. Fez um contrato de risco. Ao lado do diretor Walter Clark, traçou uma meta de montar a rede, criar uma programação de qualidade e colocar a emissora entre as primeiras do país em cinco anos. “Conseguimos em três”, orgulha-se. O famoso “padrão Globo de qualidade”, garante ele, foi um método de trabalho seguido com rigor. “Às vezes, quando vejo algum deslize na programação, sofro muito, porque tenho medo que as pessoas joguem fora isso, não é apenas um padrão técnico, é uma questão artística”, ensina.
Ao comparar a Globo de hoje com a de seu tempo, ele diz: “Os recursos tecnológicos de hoje não existiam naquela época. Mas vejo que o cuidado artístico era maior no meu tempo, talvez porque hoje o volume de produção seja maior.”
Boni admite que era controlador e explica que esse poder dava personalidade à programação. “Tinha uma equipe e filtrava as ideias de todos, mas concentrava a decisão. Isso dava personalidade à Globo, a emissora tinha uma cara. Se era boa ou ruim, isso se devia aos meus erros e acertos”, diz. Mas, atualmente, ele acha que a emissora perdeu essa personalidade. “Falta uma cara própria em todas as áreas de programação. Acho que o público sente essa necessidade de que a emissora tenha uma marca intensa”, diz ele, que jamais perde o hábito de criticar. “É uma deformação profissional”, diverte-se.
Memorandos internos de Boni na Globo vão virar livro
Depois de lançar o ‘Livro do Boni’ em 2011, contando sua trajetória na televisão e particularmente sua história de sucesso na Globo, Boni já tem ideia para escrever um segundo livro, ainda sem previsão de lançamento. Recentemente, ele recebeu de sua antiga emissora um calhamaço de memorandos que produziu em 31 anos de trabalho.
"O CDOC (Centro de Docmentação da TV Globo) guardou tudo. E a Globo me deu de presente. São cerca três 3 mil memorandos que escrevi, alguns com textos instrutivos, em que falo como tem que fazer um programa ou como um câmera tem que enquadrar uma cena”, conta.
Boni está fazendo uma triagem dos documentos. “Li uns 20 ou 30, dava para chorar. Eu não me lembrava de algumas coisas. Tem um memorando sobre cameraman, dizendo para os caras como tinha que travar a câmera, que não podia balançar, que não podia acompanhar a cabeça do cara em movimento. É engraçadíssimo”, diverte-se.
Dono da TV Vanguarda, afiliada da Globo, ele esclarece que 70% da programação é de conteúdo da sua antiga emissora, enquanto os outros 30% são de produção local. “Dá para fazer experiências interessantes, criar um contato com a comunidade. Somos um canal com 100% digital. Temos diversas inovações. O manual de implantação do digital da Vanguarda, por exemplo, é adotado pela Globo”, revela.
Boni não espera receber homenagens nos 50 anos da Globo. “Nem gosto. A melhor homenagem que recebo é quando as pessoas fazem o que sonhei e fazem bem feito”, explica. “Tenho orgulho de ter criado um mercado de trabalho para atores, diretores e autores brasileiros”, completa. Aposentadoria não está nos seus planos. “Quero morrer fazendo televisão”, diz, aos 79 anos.