Por bianca.lobianco

Rio - A tradição é longa, mas foi a Constituição de 1988 e leis que derivaram dela que dividiram os brasileiros, perante a Lei, entre cidadãos comuns — a grande massa — e cerca de 50 mil que, por fazerem parte da máquina que comanda o Estado, se tornaram mais cidadãos do que os outros. Este grupo — que inclui desde o presidente da República até deputados estaduais, passando por juízes, promotores e generais — gozam de algum tipo de ‘foro privilegiado’. Caso cometam crimes, não são julgados por tribunais comuns e sim por alguma corte especial.

Foi esse ‘direito’ que o senador Romero Jucá (PMDB-RR), em momento de rara sinceridade, classificou como uma ‘suruba’. Queixando-se de uma proposta feita pelo ministro Luís Roberto Barroso, do STF, que restringia o direito ao foro dos parlamentares, mantendo o privilégio para os demais, inclusive juízes, ele soltou a frase: “Suruba é suruba. Aí é todo mundo na suruba, não uma suruba selecionada”. 

Para o presidente da Associação de Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Roberto Veloso, o foro é perverso por dois lados. “Ele favorece a impunidade dos que gozam do privilégio porque as ações demoram e acabam prescrevendo. E como os processos contra autoridades atravancam os tribunais superiores, o cidadão fica desatendido. Basta ver o julgamento do Mensalão. Foram 60 sessões do Supremo, que deixou de cuidar, por quase um ano e meio, de temas de interesse geral”, ressalta.

A longa lista de autoridades que gozam do privilégio — o nome técnico é ‘foro por prerrogativa de função’ — impressiona (veja ao lado). A Ajufe contou 46 mil detentores do privilégio em recente pesquisa, mas admite que, pela dificuldade de acesso a dados completos e atualizados, alguns dos incluídos — como os chefes de missão diplomática — ficaram de fora. Mas poucos são os que se dispõem a defender o instituto. Os juízes federais — que têm o privilégio — já se manifestaram por sua extinção. “Fizemos uma pesquisa, e 93% da categoria é contra”, diz Veloso.

O procurador de Justiça Rômulo Andrade Moreira, da Bahia, ressalta que os Tribunais de Justiça (TJs) nos estados estão atravancados de ações contra prefeitos. “Eles não serão punidos porque esses tribunais não estão equipados para comandar investigações. Foro como no Brasil não há em lugar nenhum no mundo”, diz. Estudo da Câmara dos Deputados publicado ano passado atestou: entre 16 países pesquisados, nenhum incluía tanta gente no que Jucá chamou de “suruba”.

Privilégios diante da lei são, de fato, uma tradição arraigada na vida brasileira. No século 16, em Portugal e no Brasil, o crime de ‘sedução’ tinha dois pesos, de acordo com o sedutor. Se fosse “pessoa posta em dignidade ou honra”, era riscado dos livros da Coroa e poderia ser degredado para a África. Sendo plebeu, era condenado à morte. 

Proposta para extinguir foro adormece há três meses no Senado

Existe uma Proposta de Emenda Constitucional no Senado para extinguir o foro para todas as autoridades brasileiras, inclusive o presidente, em casos de crimes comuns. Apresentada por Álvaro Dias (PSDB-PR) e relatada por Randolfe Rodrigues (Rede-AP), a PEC foi aprovada em novembro, por unanimidade, pela Comissão de Constituição e Justiça, mas não há previsão para ser levada ao plenário.

Rodrigues promete pressionar pela inclusão da PEC na pauta em março. Seu argumento é que a proposta retiraria milhares de processos das mãos de ministros e desembargadores e distribuiria para 16 mil juízes, mais equipados para instruir processos.

Publicamente, poucos se manifestam a favor do foro privilegiado, mas Dias admite que há reações veladas entre os muitos parlamentares que estão enredados ou à espera das delação da Lava Jato. “Sem pressão popular, o projeto não passa. E o foro privilegiado é uma coisa que não se admite mais”, diz Dias. 

OS PRIVILEGIADOS
Presidente da República
Vice-presidente da República
Senadores
Deputados
Ministros do Supremo Tribunal Federal
Procurador-geral da República
Ministros de Estado
Comandante da Marinha
Comandante do Exército
Comandante da Aeronáutica
Membros dos Tribunais Superiores
Membros do Tribunal de Contas da União
Chefes de missões diplomáticas
Autoridades ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, em caso de habeas corpus
Governadores dos estados
Governador do Distrito Federal
Desembargadores dos Tribunais de Justiça
Membros dos Tribunais de Contas
Membros dos Tribunais Regionais Federais
Membros dos Tribunais Regionais Eleitorais
Membros dos Tribunais Regionais do Trabalho
Membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Município
Autoridades federais da administração direta ou indireta, em caso de mandado de injunção
Juízes federais, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho
Membros do Ministério Público da União
Juízes estaduais e do Distrito Federal
Membros do Ministério Público estadual
Prefeitos
Oficiais generais das três Armas
Juízes eleitorais, nos crimes eleitorais

LEMBRE DO CASO
O inferno astral do senador começou no dia 15, quando tentou levar ao plenário uma emenda que impedia presidentes do Senado e da Câmara de ser investigados por atos anteriores ao mandato. A proposta beneficiaria o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) e o senador Eunício Oliveira (PMDB-CE), ambos citados em delações da Lava Jato. Diante da repercussão negativa, no mesmo dia, Romero Jucá teve que recuar. Além das referências à “suruba”, o líder do governo tem viajado pela história para defender as suas propostas. “Está parecendo que estamos vivendo o período da Inquisição, quando alguém gritava ‘Ele é um bruxo!’”, disse, ao se queixar da suposta ‘perseguição’ de jornalistas, se comparando às pessoas que foram parar na fogueira por crimes contra a Igreja. No mesmo discurso, Jucá pareceu profetizar um futuro sinistro para o Brasil: “Todo mundo sabe como terminou a Revolução Francesa. Robespierre começou guilhotinado, terminou guilhotinado (sic)”. O senador não especificou a que pescoço ele se referia.


*Reportagem de Dirley Fernandes

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