Rio - ‘Há uma necessidade cada vez maior de holofotes, especialmente quando há projetos tramitando no Congresso que favorecem delegados”. A constatação é do policial federal Luís Antônio de Araújo Boudens, presidente da Federação Nacional dos Policiais Federais. O dirigente critica com veemência a forma como a Operação Carne Fraca foi divulgada, numa entrevista coletiva que foi o ponto de partida para uma série de atitudes que mostram como o caso deixou o governo desnorteado.
A visita do presidente Michel Temer a uma churrascaria, no domingo, e a do ministro da Agricultura, Blairo Maggi, a uma fábrica sob investigação, sinalizam que na vida política brasileira, mais importante do que medidas efetivas, o importante é produzir boas imagens. “Nada é feito sem uma câmera na frente. É uma disputa constante, inclusive entre instituições como a Polícia Federal e o Ministério Público, pelo protagonismo", constata a pesquisadora de Comunicação Genira Chagas, da Unesp.
Na manhã de sexta-feira, 17 de março, um release anunciou a Operação Carne Fraca, como “a maior operação já realizada pela Polícia Federal (PF) em toda sua história”. O documento anunciava para 10h uma entrevista coletiva na sede da PF em Curitiba. Durante a entrevista, o centro das atenções foi um jovem delegado, com seis anos no cargo, Maurício Moscardi Grillo.Em dado momento, ele pontificou: “A utilização de papelão por essas empresas — até essas que já citei, de grande porte (JBS e BRF) — para colocar esse tipo de situação em comidas, para fazer enlatados, e outras coisas que podem prejudicar a saúde humana. (...) Tudo isso mostra que o que interessa para esse grupo é o capitalismo, é o mercado, independente da saúde pública”. Os problemas que estavam sob investigação em cada empresa não foram especificados.
A noticia correu rápido e o estrago foi brutal. Mais de duas dezenas de países e blocos suspenderam as exportações brasileiras, levando a uma queda de 99% nos embarques; pelo menos 35 frigoríficos paralisaram suas atividades e ao menos 300 pessoas perderam seus empregos. Na sexta-feira, o ministro do Planejamento, Dyogo Oliveira, disse que as consequências da Carne Fraca terão impacto no PIB do país.
Ao longo da semana, soube-se que o tal papelão era usado para embalagem e não misturado a alimentos, que só havia um laudo técnico para embasar a “maior operação da história” da PF e que na grande maioria das empresas investigadas não havia suspeitas de questões sanitárias, mas sim de corrupção.
“Isso (a divulgação das investigações, que transcorrem há dois anos) deveria ter sido feito numa fase posterior, com peritos embasando, com a presença do Ministério Público. Um delegado novo, como o Moscardi, não pode presidir um inquérito dessa importância”, diz Boudens. “O holofote, o interesse de atrair a atenção para uma categoria — a dos delegados — prevaleceu”.
Um delegado sempre em evidência
Moscardi já figurou numa entrevista da revista Veja reclamando que a PF “havia perdido o timing” para prender o ex-presidente Lula e dizendo que procuradores da Lava Jato personificam a figura de “heróis”.
No Acre, protagonizou a Operação G7, na qual 21 empresários e autoridades locais foram presas. Todos seriam absolvidos por “não haver prova do delito”.
Também não ficou nada bem uma investigação que Moscardi comandou sobre um grampo na cela do doleiro Alberto Youssef. Após concluir que a escuta era antiga, foi desmentido por um perito da PF.
Por fim, no ano passado, prendeu Guido Mantega em um hospital,com timing pouco adequado: a mulher do ex-ministro, em tratamento de câncer, fazia uma biópsia no momento. A PF não respondeu a uma solicitação de entrevista com o delegado.
Churrasco como resposta à crise
“O espetáculo apresenta-se como algo grandioso, positivo, indiscutível”, disse o intelectual francês Guy Debord, para quem esse modelo é o dominante na vida social desde a metade do século passado. O escritor falava em ‘pseudo-acontecimentos’. Para Genira Chagas, que pesquisa a obra do filósofo, o churrasco oferecido pelo presidente Michel Temer a embaixadores de países importadores da carne brasileira dois dias depois da deflagração da Operação Carne Fraca é um exemplo do fenômeno. “Só há uma imagem: a foto do presidente com a carne. Mas não há qualquer informação relevante por trás disso”, diz. “As questões que interessam não são aprofundadas”. Uma semana depois do churrasco, os governos dos diplomatas presentes na churrascaria Steak Bull tinham aplicado restrições à entrada de produtos brasileiros.
A União Europeia, que,ao lado da China, é o mais importante mercado para as carnes brasileiras, ameaça ampliar as restrições à entrada da proteína nacional no continente. Oficiais estão insistíssemos com as explicações fornecidas pelo governo brasileiro até agora. “O ministro está perdidaço”, conta uma fiscal do Ministério da Agricultura. “Essas denúncias dos colegas do Paraná eram antigas, mas o ministério engavetava, talvez pela politicagem envolvida”, diz.
Espetáculos com finais nada felizes
Na quinta-feira, o ministro da Agricultura, Blairo Maggi, levou um séquito de jornalistas, inclusive chineses, para uma visita a uma fábrica da BRF em Rio Verde (GO). Ali, vestido com roupas de proteção que lhe davam uma aparência que foi comparada à de um telletuby, deu várias entrevistas, tentando desesperadamente convencer a audiência sobre a qualidade da carne brasileira.
Os fiscais do ministério da Agricultura se ressentiram da atitude do chefe da pasta. “A categoria está sendo estraçalhada e o ministro só tem se preocupado em preservar as empresas”, diz Marcos Lessa, vice-presidente da Anffa Sindical (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários). Ele estranha a escolha de uma planta da BRF — que fabrica os produtos das marcas Sadia e Perdigão — no mesmo estado da fábrica da empresa em Mineiros, uma das três únicas unidades interditadas pela Operação Carne Fraca.
Não é raro que eventos midiáticos se revelem tiros pela culatra. Um exemplo foi a iniciativa do prefeito de São Paulo, João Doria, de se vestir de gari e ajudar a varrer ruas de São Paulo. Depois que inspirou uma série de memes, o prefeito abandonou a ideia.
A consequência de transformar a atuação política em espetáculos é uma manipulação cada vez maior da opinião pública, alerta o antropólogo Cláudio Coelho.
“A espetacularização é inseparável da crise nas instituições. A capacidade de manipular a opinião pública abre espaço para o exercício do poder de forma abertamente ditatorial”, diz.