Kelly dos Santos mostra a doação de álcool gel que recebeu de uma igreja na LapaJorge Costa/Agência O Dia
Por Jorge Costa*
Publicado 28/03/2021 06:00 | Atualizado 28/03/2021 13:03
Rio - "Eu queria te pedir uma ajuda e com urgência", foram as primeiras palavras que Edineia Meirelles disse durante a entrevista para O DIA. Ela, que vive na rua há quatro anos e seis meses, faz parte de um grupo de pelo menos 7.272 pessoas, segundo o último censo de população em situação de rua da Prefeitura do Rio, realizado em novembro de 2020. O levantamento apontou uma triste realidade do que não deveria ser encarado como novo "normal": 752 pessoas informaram que foram para as ruas depois que a pandemia começou e destacaram como motivo a perda do trabalho (34%) e perda da moradia (19%). A reportagem percorreu as ruas do Centro e mostra como a covid-19 deixou essas pessoas ainda mais vulneráveis.

O número é maior do que o da última contagem realizada em 2018, que apontava para um público de 4.628 indivíduos. Vale ressaltar, contudo, que naquele ano a contagem foi muito criticada, e especialistas também consideram que a quantidade de pessoas sem teto pode ser maior. Perguntados sobre o que precisam para sair dessa condição, a maior parte dos participantes da pesquisa mais recente respondeu: “emprego”.

A sensação de abandono, sofrimento e fome são problemas comuns para quem vive nas ruas da capital fluminense. Com a chegada da pandemia, os desafios cotidianos enfrentados por essas pessoas se intensificaram. Edineia Meirelles contou ao DIA que ela costuma vender amendoim nas ruas da cidade para conseguir alguma renda. Ela percebeu que a movimentação na cidade diminuiu muito comparado a antes da pandemia, o que prejudicou diretamente a sua atividade. A pequena renda que ela tinha, ficou ainda menor.

"Olha, eu não fico à toa não! Eu vendia amendoim todos os dias. Quando começou a crescer essa doença, a gente reparou que a cidade ficou totalmente vazia, com quase ninguém, e eu ficava andando por aí tentando vender os meus amendoinzinhos. Agora o movimento melhorou muito, mas eu lembro que no início não dava pra ver quase ninguém nas ruas", comentou Edineia, relembrando o auge da primeira onda da pandemia, que faz aniversário neste mês, quando o até então governador Wilson Witzel decretou quarentena no estado.

Edineia, acompanhada do seu companheiro, Luiz Fernando, e de sua “filha”, como ela costuma chamar, Amanda da Silva, fez um apelo e um pedido de ajuda.

"Tenho uma filha chamada Daiana, ela tem 31 anos e está com tuberculose. O marido dela está preso, e ela cuida sozinha de mais quatro filhas. Eu fico nas ruas pedindo cestas básicas para ajudar a minha filha, ela precisa de uma cadeira de rodas e de comida, eu fico aqui todos os dias, eu só queria ter condições de poder ajudar a minha filha", disse Edineia, enquanto tentava conter as lágrimas.

Edineia Meirelles garantiu que fica em frente à estação das barcas todas as manhãs, todos os dias, sentada próximo à saída das barcas. De onde vem o movimento das pessoas de Niterói para o Rio de Janeiro.

Perguntados se receberam algum apoio por parte do governo, Edineia, Luiz Fernando e Amanda da Silva confirmaram que já receberam atendimentos do serviço de abordagem da prefeitura. Mas que era necessário um apoio maior. Eles reclamam que não possuem acesso a condições mínimas de higiene, e que às vezes precisam se deslocar a pé da Praça XV até a Lapa apenas para conseguir tomar um banho.

Edineia mostrou algumas doações que eles receberam de álcool em gel, e guardam em uma mochila as máscaras de proteção contra a covid-19, para evitar usar em excesso o material de proteção, pois só possuem uma máscara e não têm condições de realizar a limpeza delas.
Em frente à Candelária, Kelly dos Santos disse que recebe e usa as doações de máscaras e álcool em gel da carreata de uma igreja que vem da Lapa. Ela trabalhava como diarista, mas vive nas ruas há mais de dez anos após sair de sua casa em função de um conflito familiar. "Eu só vivo de doação, é muito difícil eu receber alguma coisa. De noite eu ganho máscara e comida do pessoal da igreja, às vezes a prefeitura também entrega", disse Kelly, que também costuma guardar o material de proteção e fazer uso quando fica em lugares com aglomeração.
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Em foto, Kelly dos Santos mostra a doação de álcool em gel que recebeu de uma carreata pertencente a uma igreja na Lapa. Ela afirma que na medida do possível mantém os cuidados para evitar o contágio pela covid-19 - Jorge Costa / Agência O Dia
Em foto, Kelly dos Santos mostra a doação de álcool em gel que recebeu de uma carreata pertencente a uma igreja na Lapa. Ela afirma que na medida do possível mantém os cuidados para evitar o contágio pela covid-19Jorge Costa / Agência O Dia
Perguntada se sairia das ruas caso tivesse uma oportunidade de trabalhar como diarista, ela disse que seria um sonho. "Acho difícil, eu não tenho sorte com nada. Se eu tivesse a oportunidade de trabalhar e sair da rua, eu sairia sim. Isso aqui não é vida", afirmou.
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No auge da pandemia, Kelly mencionou que, ao ver a cidade esvaziando, sentiu medo. "Eu não sabia de nada, sempre tinha muita gente passando. Logo depois a rua ficou vazia e eu fiquei: 'cadê as pessoas?’. Aí eu sentia um pouco de medo à noite", concluiu.
Entre o perfil apontado pelo censo de 2020: 79,6% das pessoas em situação de rua são negros ou pardos, 19% composto por mulheres, e o número de concentração maior dessa população foi no Centro do Rio, com pelo menos 1.442 indivíduos dormindo nos asfaltos da região.
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Especialistas e ativistas concordam: mais investimentos são necessários para garantir a melhoria das condições de vida dessas pessoas

Especialistas da UFF, da UERJ e ativistas de ONGs independentes que trabalham pela defesa da população em situação de rua foram ouvidos pelo DIA. Eles cobram do poder público uma atenção maior a essas pessoas. Mencionam que a prefeitura é omissa e que é indispensável um maior investimento diante da pandemia para prevenir que mais pessoas passem pela mesma realidade. A vacinação imediata, o aumento da oferta de emprego para este grupo, a entrega de moradias no modelo Housing First (política pública que defende a entrega de uma moradia como a primeira ação de acolhimento dentre as demais que são adotadas), a ampliação do acolhimento e a desburocratização para acesso aos programas assistenciais foram algumas das principais medidas defendidas.
Além das ONGs independentes, a Fundação Leão XIII, vinculada à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos, também realiza um trabalho de atendimento e apoio à população em situação de rua. A organização atua na parte de obtenção gratuita de documentos como certidão de nascimento e identidade, no encaminhamento deste público para os serviços que eles necessitarem, na ação coordenada em parceria para entrega de quentinhas e na abordagem social.

A Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS) do Rio dispõe hoje de 65 abrigos para acolhimento, pertencendo a rede própria do município e parceria com empresas conveniadas. Vinte e quatro unidades são direcionadas a crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência. A rede própria conta com 41 equipamentos, dos quais hoje 36 estão em funcionamento.

A SMAS defende projetos de acolhimento coordenados com o ensino de atividades empreendedoras, como uma alternativa para que as pessoas em situação de rua possam desenvolver meios próprios de conseguir se auto sustentar. Até o momento, a secretária Laura Carneiro confirmou que na capital há 1.932 pessoas acolhidas pela rede.
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O que dizem os especialistas, gestores e ativistas ouvidos pelo DIA

Membro do Fórum Estadual de População em Situação de Rua e doutoranda pela UFF, Giovanna Bueno Cinacchi defende que uma alternativa para diminuir o problema da situação de rua é o fortalecer políticas de habitação. "Para além dos abrigos, o mundo inteiro hoje percebeu que a política habitacional consegue diminuir drasticamente a quantidade de pessoas em situação de rua. Elas precisam de casa, demandamos não só abrigos, mas ações habitacionais, e também a expansão do aluguel social", afirmou.

A gestora do Projeto Ruas, Larissa Montel, também aponta a política habitacional como uma solução direta para a população em situação de rua. “A primeira ação que achamos importante neste momento é a oferta da vacina. Pensando num espaço mais amplo, consideramos mais eficiente o modelo de 'Moradia Primeiro' (Housing First), que é uma política já testada na Europa, na América Latina e no Norte e que deu certo”, disse.

A presidente da Fundação Leão XIII, Andréa Baptista mencionou que os trabalhos não foram paralisados mesmo durante o auge da pandemia em 2020. "Nós não paramos durante esse período, fizemos a distribuição de máscaras, investimos no uso de álcool em gel e da melhor forma também equipamos os nossos profissionais para que não se pusessem em situação de risco sanitário", disse. 
Entre diversos serviços oferecidos pela Fundação, Baptista citou a inauguração no final de 2020 de um serviço feito em parceria com o Detran. "Nós inauguramos em novembro do ano passado um posto de identificação para as pessoas em situação de rua, em parceria com o Detran, que dá suporte às nossas ações. Mas que também é um serviço para os municípios da região metropolitana no atendimento às demandas dessa população", afirmou.
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Por fim, Baptista mencionou o programa RJ Alimenta. "Sobre a distribuição de alimentação, nós ofertamos em três pontos na região metropolitana do Rio em parceria com a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos no âmbito do programa RJ alimenta, as refeições, em quentinhas, que são distribuídas para a população mais vulnerável e situação de rua", concluiu. 
O professor e pesquisador da UERJ Dário de Souza menciona que, quando uma pessoa chega à situação de rua, é porque diversas garantias legais não foram atendidas. "A população em situação de rua é, em si, uma crítica à política de trabalho, de segurança e educação", disse.
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Ele também defende que a expansão de empregos pode ser uma alternativa para retirar muitas pessoas das ruas. "Na minha pesquisa, identificamos que desde 1999 nós temos a presença muito significativa de pessoas vivendo nas ruas que já tiveram emprego formal, proteger o emprego, com carteira de trabalho, direitos, é uma alternativa para impedir que as pessoas sejam levadas às ruas".
A secretária Laura Carneiro, que lidera a pasta de assistência social, afirmou que, diante do desemprego, o acolhimento em conjunto com a atividade empreendedora são uma alternativa para ajudar na melhoria da condição de vida dessas pessoas. "Entregamos 6.940 máscaras, fizemos 24.376 atendimentos às pessoas, 5.096 encaminhamentos e 1.932 acolhimentos até 10 de março. É muita coisa! O acolhimento tem sido priorizado, mas não adianta acolhermos e eles saírem depois, por isso começamos a fazer ações de capacitação e empreendedorismo também", concluiu.
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* Estagiário sob supervisão de Gustavo Ribeiro
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