Publicado 04/07/2021 00:00 | Atualizado 04/07/2021 07:22
Existe um ponto sobre o qual qualquer político que se candidate a presidente da República ou a qualquer outro cargo executivo no Brasil deve ter certeza antes mesmo de entrar em campanha. Caso venha a ser eleito, é muito provável que, mais cedo ou mais tarde, será obrigado a se defender de algum pedido de impeachment apresentado por algum adversário — e, algumas vezes, até apoiado por "aliados" de primeira hora, que rompem com o governo por não terem seus interesses contemplados.
O recurso se tornou tão corriqueiro que é possível afirmar que o modelo político seguido pelo Brasil pode ser chamado de "impeachmentocracia". Ou seja, um sistema político em que o principal mandatário do país, de um estado ou de um município, já assume o posto para o qual foi eleito pelo voto direto sob uma ameaça de perdê-lo. E, dependendo das condições políticas, a ameaça pode se tornar real.
É o que está acontecendo neste momento com o presidente Jair Bolsonaro. De tanto não ligar para os sinais de alerta que vêm recebendo de todos os lados, ele, agora, corre o risco de enfrentar um processo de impeachment com força para lhe custar o mandato.
Na semana passada, foi protocolado na Câmara dos Deputados o chamado "Superpedido de Impeachment" contra Bolsonaro. O documento, que tem 46 signatários, entre dirigentes partidários, parlamentares e dirigentes de entidades da Sociedade Civil, ainda não foi analisado pela mesa diretora. Segundo o presidente da Casa, Arthur Lira, isso só acontecerá após a conclusão dos trabalhos da CPI que investiga irregularidades no combate à Covid-19. Lira não disse, e nem precisava dizer, que, se a CPI conseguir mobilizar a opinião pública contra o governo, nada, nem todo apoio do Centrão, terá fora para manter Bolsonaro no Planalto.
ASPECTOS PECULIARES
Antes do documento protocolado na semana passada, outros 122 pedidos de impeachment contra Bolsonaro tinham chegado à Câmara. Nenhum prosperou. Alguns deles, inclusive, já foram arquivadas. Mesmo assim, o número é absurdo: significa que foram apresentados quatro pedidos de impeachment para cada um dos 30 meses do mandato de Bolsonaro ou, se preferir, um para cada semana de seu governo.
O pedido da semana passada, o 123º da série, é diferente dos anteriores. Em primeiro lugar, ele não é resultado do humor de momento de algum opositor do presidente, mas de uma articulação suprapartidária com ramificações em diversos segmentos da sociedade. Além disso, une todos os adversários do presidente, independente daquilo que os motiva a agir contra Bolsonaro, e consolida num só pedido os principais argumentos jurídicos apresentados nos 122 pedidos anteriores. Para completar — e esse é o ponto mais delicado —, deixa Bolsonaro diante de uma situação que só os presidentes politicamente mais habilidosos conseguiram enfrentar com sucesso.
Todos os presidentes que governaram o Brasil desde a redemocratização, inclusive José Sarney, tiveram seus mandatos na mira de algum pedido de impeachment. Entre os eleitos pelo voto direto, então, os números são eloquentes. Fernando Collor enfrentou 29 pedidos de impeachment — um dos quais evoluiu, foi julgado e custou a ele a metade do mandato. Itamar Franco, que era vice e assumiu o governo, enfrentou quatro.
Fernando Henrique Cardoso, 24. Luiz Inácio Lula da Silva, 37. Dilma Rousseff, que teve o segundo mandato abreviado, lidou com 68 pedidos e seu vice, Michel Temer, com 31. Esses números, que constam de um levantamento feito pela Câmara dos Deputados, não são mencionados aqui a título de curiosidade. Eles servem para comprovar dois aspectos muitos peculiares da personalidade política brasileira.
O primeiro desses aspectos é que os pedidos de impeachment se tornaram tão comuns no Brasil que ninguém se espanta quando um deles é apresentado. O segundo é que a taxa de sucesso das iniciativas, que é baixíssima quando comparada com o número de pedidos aceitos pela mesa diretora, pode ser elevada quando vista por outro ângulo. De um total de cinco presidentes eleitos nos oito pleitos diretos que houve no Brasil desde 1989, dois foram cassados. É um índice preocupante para qualquer democracia.
FERRAMENTA PODEROSA
Antes de prosseguir, um esclarecimento se faz necessário. Ninguém está dizendo que o instrumento do impeachment não deva existir na Constituição. Pelo contrário! Ele é a ferramenta mais poderosa de que o sistema presidencialista dispõe para mostrar ao mandatário que, mesmo tendo chegado ao cargo mais elevado do país, seus poderes não são absolutos. Eles têm que se guiar pela Constituição, seguir ao pé da letra todas as outras leis do país e, ao mesmo tempo, não se descuidar um só minuto de ampliar seu capital político.
O que precisa ser discutido é a banalização do recurso. Nenhum governo é capaz de implementar programas de longo prazo quando tem, sempre pendurada sobre a cabeça, uma espada que pode despencar a qualquer momento. Um mandato obtido legalmente nas urnas, pelo voto direto dos cidadãos, não pode ter sua cassação pedida apenas porque uma determinada categoria profissional ou um determinado partido político não vai com a cara do presidente. Essa é uma das maneiras de se encarar o problema. Há outras.
Os presidentes que tiveram habilidade política, como foram Fernando Henrique e de Lula, levaram seus mandatos até o fim ainda que tenham enfrentado situações difíceis e lidado com oposições acaloradas. Em alguns momentos, eles foram obrigados a entregar alguns anéis para preservar os dedos. Collor e Dilma, que não tiveram a mesma habilidade, perderam os anéis, os dedos e os mandatos.
Pelo que tem feito até agora e por sua insistência em buscar o confronto e desafiar o Congresso, o destino do mandato de Bolsonaro parece mais próximo dos de Collor e Dilma do que de Fernando Henrique e Lula. A pergunta a ser feita em relação a ele neste momento é: se nenhum dos 122 pedidos de impeachment produziu resultados, por que acreditar que o 123º possa ter um destino diferente?
Ainda é cedo para se arriscar uma resposta a essa questão. Um detalhe a ser observado nos julgamentos promovidos pela "impeachmentocracia" brasileira é que os processos só vão adiante nos momentos em que a inabilidade política do governo se torna tão evidente que amplifica as irregularidades que eventualmente tenham sido cometidas.
Se esse momento já chegou para o governo Bolsonaro é algo que será testado na medida em que o "Superpedido" começar a ser discutido na Câmara. A lição que fica, de qualquer maneira, é a de que, se os eleitores são a mola que impulsiona alguém em direção ao poder, quem o mantém lá é o exercício da política. Para o bem da democracia.
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