Daqui a alguns dias, assim que o nível do Guaíba voltar ao normal, a lama for removida das ruas de Porto Alegre e de centenas de cidades gaúchas e as emissoras de TV deixarem de transmitir seus noticiários ao vivo, diretamente das áreas mais castigadas pela tragédia, é provável que muita gente considere o problema resolvido e ache que o Rio Grande do Sul terá voltado a ser o que era antes. Não! Nunca voltará. E, pensando bem, é até bom que não volte a ser o que era.
Esse desejo, claro, nada tem a ver com o novo estado, mais moderno e bem servido em matéria de infraestrutura, que pode surgir sobre os escombros do que foi destruído pelas chuvas. Isso, claro, exigirá um trabalho fenomenal. Será preciso recuperar estradas, ruas, pontes, viadutos, estações de saneamento, portos, barragens, rede elétrica, prédios públicos, aeroportos e até mesmo estádios de futebol que foram danificados ou, em casos extremos, completamente destruídos pelas águas.
Exigirá, também, uma montanha de dinheiro. Os cálculos mais apressados mostram que para deixar tudo o que foi danificado em boas condições de funcionamento será necessário algo em torno de R$ 100 bilhões. Isso sem considerar as propriedades privadas que foram danificadas no campo e na cidade e que terão que ser recuperadas com recursos de seus proprietários.
O valor, como se vê, não é modesto. Para se ter uma ideia do que significam esses R$ 100 bilhões diante da disponibilidade de recursos, basta dizer que a proposta de Orçamento da União para 2025, encaminhada ao Congresso no último dia 31, prevê cerca de R$ 70 bilhões para investimentos em todo o país. A maior parte desses recursos está comprometida com obras do Programa de Aceleração do Crescimento, o Novo PAC. Ou seja, é dinheiro carimbado que dificilmente terá outro caminho.
A briga para garantir ao Rio Grande do Sul os recursos de que o estado necessita será intensa. Afinal, reservar para um único estado uma quantia superior ao total de investimentos previsto para todo país em 2025, por mais emergenciais que sejam suas necessidades e por mais sincera que tenha sido a comoção das autoridades diante do sofrimento do povo gaúcho, exigirá um sacrifício enorme. Um sacrifício que um Estado com as características do brasileiro talvez não esteja disposto a fazer.
MUDANÇA DE MENTALIDADE — Estamos falando de um Estado que, ao longo dos anos, desenvolveu o hábito perigoso de gastar primeiro e só depois procurar saber de onde tirará os recursos necessários para pagar a conta. Por causa disso, está no limite de sua capacidade de endividamento. Assim, quando se vê diante de uma necessidade real de despesas, como essa que está sendo imposta pela tragédia no Rio Grande do Sul, precisa fazer uma ginástica para levantar recursos. Qualquer passo em falso nessa hora, por mais justificável que seja a despesa que se pretende fazer, pode causar um desequilíbrio fiscal que, no final das contas, espalhará prejuízos por todo o país.
Há um outro aspecto a ser considerado. Na outra ponta, há uma sociedade que, por ser obrigada a suportar nas costas um Estado mais preocupado com a própria manutenção do que com o bem-estar da população, já não aceita arcar com uma carga fiscal capaz de atender à voracidade da máquina pública. O compromisso com a causa da reconstrução do Rio Grande do Sul corre o risco de cair por terra no momento em que toda a sociedade sentir que está pagando a conta sozinha, enquanto o Estado não faz o mínimo esforço para ajudá-la.
Além disso, uma pergunta se impõe. Será que os políticos e os eleitores de outras regiões, especialmente do Norte e do Nordeste, depois que a comoção passar, não exigirão que o governo dê a elas o mesmo tratamento que dado ao Rio Grande do Sul? Ou será que não forçarão a barra para obter vantagens semelhantes, ainda que não tenham sido atingidos por tragédias da mesma dimensão?
Este é o ponto que interessa. A conclusão que se tira diante dessas considerações é a de que a primeira mudança que deve haver para garantir o sucesso do necessário programa de recuperação do Rio Grande do Sul deve ser de mentalidade. E essa mudança deve atingir uma série de pontos. No caso do Estado, o primeiro deles é, finalmente, promover a inversão total da escala de prioridades no momento da definição dos gastos públicos.
Para resolver seus problemas, o Brasil precisa decidir se continuará a destinar somas cada vez mais vultosas de recursos públicos para garantir uma vida de nababo aos servidores mais bem colocados na hierarquia do funcionalismo público. Ou se preferirá, por outro lado, reduzir as despesas com o custeio da máquina e passar a reservar uma parte maior dos recursos arrecadados com impostos para melhorar a infraestrutura de um país que precisa dela para, a começar pelo Rio Grande do Sul, se recuperar, voltar a crescer, gerar renda, oportunidades e melhorar a qualidade de vida da maioria da população.
É aí que está a principal necessidade de mudança. Se a mentalidade no Sul e em todo o país permanecer igual à que existia antes que os temporais desabassem sobre os pampas, é sinal de que ninguém aprendeu nada com a tragédia que castigou pelo menos 428 dos 497 municípios gaúchos. Ou, então, que não houve qualquer comoção real diante desse desastre que já tirou 136 vidas (número que pode até triplicar na medida em que as buscas pelos desaparecidos continuarem avançando), e que, até a sexta-feira passada, já havia deixado mais de 165 mil pessoas desalojadas e quase 70 mil instaladas em abrigos mantidos pelas doações que têm chegado de todo o país.
Pior: essa situação, que já é terrível, pode se tornar ainda pior. Se há algo que, a esta altura, pode ser dito a respeito da enchente que cobriu boa parte do Rio Grande do Sul é que, mais cedo ou mais tarde, um novo desastre, de proporções tão devastadoras quanto as do atual, acontecerá. Um estudo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais — INPE, que produz algumas das estatísticas climáticas mais respeitadas do mundo, prevê um aumento superior a 50% das chuvas no extremo sul do Brasil nos próximos 30 anos.
MANIFESTAÇÕES ATÍPICAS — Não é o caso, neste momento, de sair apontando dedos e procurar por culpados entre os adversários políticos, como se viu nos últimos dias. Também não é o caso de tentar dar a fatos isolados uma dimensão maior do que têm — como no episódio da retenção de caminhões carregados de donativos aos flagelados retidos por barreiras em rodovias federais. O ideal seria que incidentes como esse, que de fato aconteceram, não tivessem ocorrido. Mas, já que aconteceram, eles apenas demonstram a necessidade de melhorar o treinamento dos funcionários públicos encarregados de fiscalizar as rodovias e prepará-los para lidar com emergências.
O certo é que qualquer debate sobre picuinhas políticas em meio a uma tragédia como essa servirá apenas para dificultar o aprendizado e prolongar os efeitos negativos de um fenômeno natural que jamais poderia ter sido evitado por este ou qualquer outro governo. O desastre, em si, não se deu por responsabilidade direta nem por negligência de nenhuma autoridade federal ou gaúcha, dos atuais ou dos governos passados. A causa, como vem sendo dito desde que tudo começou, foi um ciclone extratropical que formou sem aviso, gerou ventos de mais de 100 quilômetros por hora e provocou temporais muito mais severos do que os esperados nesta época do ano.
Fenômenos como esse destroem o que encontram pela frente e é justamente aí que está a necessidade de se aprender a lidar com eles. Por mais imprevisíveis que sejam, é preciso que estejamos cada vez mais preparados para recebê-los, conviver com eles e minimizar as consequências de sua chegada. Eventos dessa natureza têm se tornado cada vez mais corriqueiros e as tragédias causadas por essas manifestações climáticas atípicas têm se tornado tão frequentes que ninguém mais tem o direito de alegar surpresa diante delas. O que é preciso fazer é, daqui por diante, estar cada vez mais preparado para lidar com os efeitos das ocorrências meteorológicas imprevistas.
Uma afirmação como essa, além de óbvia, pode parecer apenas mais uma das demonstrações de ingenuidade que às vezes têm sido dadas por esta coluna. Será? Pode ser. A questão é que, no Brasil, a solução dos problemas nunca se dá numa velocidade proporcional à comoção que um determinado evento causou. As providências prometidas no calor de uma tragédia quase nunca são tomadas a tempo de minimizar os efeitos da tragédia seguinte.
CONTENÇÃO DE ENCOSTAS — Em fevereiro de 2022, para citar apenas um exemplo, um temporal “atípico”, “inesperado” e com chuvas superiores à “média histórica” do lugar onde caiu — como costumam ser descritas as ocorrências dessa natureza — caiu sobre Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro. Enquanto as famílias ainda choravam os mortos, que chegaram a 235 naquela ocasião, houve promessas de obras emergenciais destinadas a resolver de uma vez por todas o problema dos deslizamentos de encostas típicos da região.
No calor da comoção, tanto o governo federal quanto o estadual prometeram apressar a liberação de recursos para 192 obras, a grande maioria destinada à contenção de encostas. Somadas, elas exigiriam pouco mais de R$ 100 milhões. Pois bem. No caso de Petrópolis, dois anos depois das tragédias, 26 das obras apresentadas inicialmente como essenciais para salvar vidas e impedir que a infraestrutura da cidade voltasse a ser destruída pelo temporal seguinte sequer tinham passado pelo processo de licitação. E no Sul, como será?
Desastres como o que se abateu agora sobre o Rio Grande do Sul acontecem desde que o mundo é mundo. Desde o dia 27 de abril, quando as águas começaram a desabar com violência sobre a região de Porto Alegre e outros pontos do estado, muita gente tem comparado o acontecimento de agora com as cheias históricas de 1941. Naquele ano, o nível do Guaíba ficou 4,76m acima do leito (sendo que, pelas medições locais, qualquer nível acima de 3 metros já é considerado uma inundação). Só para efeito de registro, desta vez as águas chegaram a alcançar 5,33m no domingo passado — mas, em casos como esses, meio metro a mais ou meio metro a menos não tornariam a situação menos dramática.
O que interessa, nesse caso, é que as mudanças climáticas têm tornado esse tipo de fenômeno cada vez mais frequente e que, no ritmo que elas têm acontecido, não haverá uma espera de outros 83 anos (que é o tempo que separa 1941 de 2024) para que uma nova enchente de proporções diluvianas cubra a região. E já que as mudanças capazes de reduzir o aquecimento global, mesmo que sejam conduzidas com afinco por todos os que têm responsabilidades sobre o clima, ainda demorará décadas para produzir efeitos positivos, a única solução é aprender a conviver com essas ocorrências e tomar as providências para que os fenômenos climáticos não se transformem em tragédias de proporções gigantescas.
À ESPERA DA TRAGÉDIA — Isso mesmo. Embora não seja desejável, é possível se preparar para lidar com fenômenos imprevisíveis. Mais do que os ciclones extratropicais, os terremotos (que nada têm a ver com as mudanças climáticas, é bom deixar claro) chegam sem o menor aviso. Em 1999, um tremor com mais de sete pontos na escala deixou mais de dois mil mortos na ilha chinesa de Taiwan. O governo local tomou providências. Adequou as construções a esse tipo de fenômeno, alterou a localização de aglomerados populacionais e tomou outras iniciativas que, nos abalos seguintes, ajudaram a salvar milhares de vidas.
A prova do acerto do que foi feito veio em 2016, quando um novo terremoto de grandes proporções sacudiu a ilha. O número de mortos foi de mais ou menos cem pessoas. Em abril deste ano, um novo terremoto, um pouco mais forte do que o de 1999, causou danos consideráveis em extensas áreas urbanas de Taiwan. O número de mortos desta vez não alcançou 17. Os escombros de edifícios que desabaram foram removidos em questão de dias e, em seu lugar, serão erguidas novas edificações, mais preparadas para resistir aos abalos. Isso só aconteceu porque, além do acerto do trabalho de engenharia, os moradores foram preparados para reagir a terremotos. Pelo que se notou no calor dos acontecimentos, cada pessoa por ali sabia exatamente o que fazer assim que a terra parou de tremer.
De volta ao Brasil, o Rio Grande do Sul está diante da possibilidade de fazer o mesmo — e se preparar para eventos que, se não podem ser evitados, devem ser devidamente respeitados. Guardadas as diferenças que existem entre os efeitos das enchentes e dos terremotos, é perfeitamente possível — ainda mais agora que ela terá que ser reconstruída praticamente do zero — adequar a infraestrutura local a esse tipo de ocorrência.
Também é possível reduzir o impacto das tragédias e zelar para que, ainda que não seja possível salvar tudo, pelo menos evitar as cenas de pessoas arrastadas pelas enxurradas ou de corpos afogados na lama. E, também, o relato desesperado de quem viu tudo o que conseguiu construir ao longo da vida arrastado por uma correnteza que chegou de repente.
É preciso salvar vidas e, na medida do possível, reduzir os danos materiais causados por um desastre como esse. Não se trata, naturalmente, de virar as vocações do estado de pernas para o ar nem de simplesmente proibir o uso das terras mais baixas para a agricultura, a pecuária e outras formas de exploração econômica.
O Rio Grande do Sul é um grande produtor agrícola. Na verdade, é o principal responsável por fazer do Brasil o maior produtor de arroz do Ocidente. Pelo calendário agrícola normal, toda a safra já deveria ter sido colhida nesta época do ano. Mas os efeitos do fenômeno El Niño obrigaram atraso no plantio e uma parte ainda não tinha sido colhida quando as chuvas desabaram. Isso certamente causará aumento dos preços dos grãos e terá impacto sobre a inflação dos alimentos. Mas, convenhamos, esse é o tipo do problema que, sem querer reduzir sua importância, chega a parecer pequeno diante de tudo o que aconteceu.
É preciso olhar para a tragédia e tirar dela as lições possíveis. O Brasil precisa olhar com mais seriedade para os fenômenos climáticos e fazer além do que estiver a seu alcance para reduzir seus efeitos. Precisa, também, parar de ficar jogando nas costas do adversário político doméstico a culpa por tudo e entender que um problema desse tipo exige uma solução global, com a participação de gente do mundo inteiro e, dentro de casa, da esquerda, da direita, do centro ou de qualquer outra posição.
O Brasil precisa se adequar às boas normas ambientais e exigir que os países industrializados sigam o mesmo caminho. Precisa, enfim, aumentar seus esforços pela redução dos gases causadores do efeito estufa e do aquecimento global. Precisa de tudo isso. Mas, acima de tudo, precisa deixar de perder tempo com discussões estéreis e entender que não existem soluções fáceis para problemas complexos. Um problema como o do Rio Grande do Sul, é bom insistir, precisa ser enfrentado por todos. A solução do problema torna obrigatória uma mudança de mentalidade que, enquanto não vier, apenas prolongará o sofrimento das pessoas.