Marco Aurélio Bezerra de Melo é desembargador e diretor-geral da Escola de Magistratura do Estado do Rio de JaneiroDivulgação

No Código Civil em vigor no Brasil, o animal é visto como coisa, com a mesma natureza jurídica de uma mala de viagens ou de uma mesa de escrivaninha, considerado juridicamente semovente, pois, inegavelmente, se move por força própria. Talvez isso explique, mas não justifique, a forma como os animais domésticos, em geral, são tratados em viagens aéreas ou por outros meios.
Joca era um simpático cachorro da raça Golden Retriever, amado por seu tutor, que deveria ser levado para o Mato Grosso, saindo de Guarulhos, em São Paulo, e acabou em Fortaleza, no Ceará. Uma vez verificado o erro, o animal é transportado para São Paulo, sendo encontrado morto no canil da empresa aérea após uma parada cardiorrespiratória no dia 22 de abril do ano corrente.
Há esparsas legislações de proteção aos animais? Sim. Elas são efetivas? Não. Vários motivos podem ser apontados, como a falta de responsabilidade empresarial nesse caso concreto, uma perspectiva apenas de criminalização dos maus-tratos, dispersão entre diversos comandos normativos que vão de leis federais a determinações administrativas locais, dentre outros. Em nosso modo de ver, um dos pontos mais importantes para uma melhoria no tratamento e cuidado dos animais seria a inclusão de direito dos animais não confundidos com as coisas inanimadas no âmbito da centralidade exercida historicamente pelo Código Civil, estatuto fundamental que rege a vida diária do cidadão.
Foi a medida que tomou, por exemplo, o Código Civil Português com a alteração trazida pela lei nº 8, de 3 de março de 2017, pela qual o artigo 201-B passa a explicitar que "os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza". O mesmo já tinha feito o direito alemão e francês, dentre outros.
O leitor pode perceber a importância e segurança jurídica que deve proporcionar à sociedade o Código Civil, pois essa lei rege o nosso dia a dia quando nascemos, contratamos, sofremos ou causamos um dano material ou moral a alguém, nos unimos em abrigo de afeto permanente com alguém pelo casamento ou pela união estável e mesmo depois do fim da relação afetiva, quando temos filhos adotivos, biológicos ou socioafetivos, após a nossa morte e etc, etc, etc.
E é urgente a sua atualização. Nesse sentido, há no Senado uma proposta de atualização e revisão do atual Código Civil de 2002, que foi fruto de uma construção jurídica do final da década de 60 e início da década de 70, em uma época, vejam, na qual o casamento ainda era indissolúvel. É bem verdade que foram feitas várias atualizações na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, mas o retrato que recebemos foi o ideário que muitas vezes colide frontalmente com a própria Constituição da República promulgada em 1988, exigindo um esforço de adequação pela interpretação pelos Tribunais, causando, não raro, um mal-estar indevido entre o Poder Judiciário e os demais Poderes da República.
Voltando ao Caso Joca, poderão dizer – e com boa dose de razão – que há maiores mazelas que afligem diariamente os seres humanos, vítimas de guerras, por exemplo, em várias partes do planeta, assim como nossos irmãos brasileiros desempregados, com assistência médica e educacional deficitária, dentre outras mazelas sociais e econômicas, incluindo, nesse exato ponto, a dificuldade de acesso à moradia digna.
Sucede, entretanto, que esse modesto texto cuida da comoção causada pelo Caso Joca e, nesse passo, vislumbro uma aurora de avanço civilizatório, pois sensibilizou a todos o falecimento de um ser vivo dotado de tanta sensibilidade que infarta ao chegar no equivocado ponto de chegada, diante da falta de cuidados mínimos, além da ausência de seu sujeito de afeto, que desembarcara em outra cidade.
Também chama atenção o fato de o tutor do animal ter recebido solidariedade e muita empatia de pessoas que imaginaram estar em seu lugar e sangraram junto a sua dor pela perda do amado animal.
Pois bem. Nesse exato ponto, digno de nota é o fato de que, talvez, se estivesse em vigor os dizeres do anteprojeto de atualização e revisão do Código Civil entregue ao presidente do Congresso Nacional, senador Rodrigo Pacheco pelo presidente da Comissão de Juristas, ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, no dia 17 de abril de 2024, em sessão histórica e solene no Plenário do Senado Federal, o simpático animal não teria perdido a vida e, por conseguinte, o enlutado tutor e sua família ainda contariam com a alegria do seu animal de estimação.
Isso porque o citado anteprojeto de Código Civil cuida especialmente dos animais nessas duas dimensões, ou seja, na do próprio animal e na do seu tutor.
Na primeira dimensão, o proposto artigo 91-A estabelece que os animais são seres vivos sencientes, isto é, dotados de sensibilidade, e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude de sua natureza especial, distinguindo-o, portanto, da mala de viagens ou da mesa de escrivaninha acima referida. A proposição vai além, pois afirma o seu parágrafo primeiro que a proteção jurídica dos animais será regulada por lei especial, a qual disporá sobre a obrigatoriedade de um tratamento físico e ético adequado.
Na segunda dimensão, vemos o tutor do animal sendo empoderado pelo reconhecimento de um direito fundamental e personalíssimo de afetividade pelo seu animal de estimação. O dispositivo legal submetido ao Senado Federal fala por si só. Em bela e avançada redação se comparada, inclusive, com países que já legislaram sobre essa questão em seus Códigos Civis, é dito que "Art. 19 - A afetividade humana também se manifesta por expressões de cuidado e de proteção aos animais que compõem o entorno sociofamiliar da pessoa".
Ainda na mocidade dos bancos escolares, me deparei com uma frase de um advogado italiano chamado Piero Calamandrei que me acompanha passados trinta anos de formado e peço permissão para dividir com o leitor: "Para encontrar a Justiça, é preciso ser-lhe fiel. Como todas as divindades, ela só se manifesta àqueles que nela creem". Ainda que crente em um Deus único, infinitamente amoroso, bom e justo, no plano do mundo e das coisas do mundo, essa frase retrata uma bela realidade.
Nessa senda, torço para que essa modernização do nosso Código Civil avance rápido com os aprimoramentos necessários do Parlamento para que encontremos espaço jurídico que regulamente os direitos digitais patrimoniais ou não, as relações obrigacionais virtuais, maior proteção dos vulneráveis, reconhecimento mais amplo dos direitos da personalidade, na regularização de imóveis, nos avanços na tutela da família e de seus integrantes, na maior proteção da segurança jurídica e previsibilidade nas transações empresariais, e tantos outros temas não imaginados e, portanto, não regulados no Código Civil de 2002.
De quebra, ainda teremos espaço para abrigar Jocas e seus tutores, hoje invisíveis no Código Civil em vigor, senão para dizer corretamente que o dano causado pelo animal responsabilizará o seu "dono", o que, aliás, continuará valendo, exigindo responsabilidade e cuidado deste a fim de evitar trágicos acidentes como o que causou graves lesões físicas e morais a uma grande escritora brasileira recentemente, para a qual externamos toda nossa solidariedade.
Marco Aurélio Bezerra de Melo
Desembargador e diretor-geral da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro