
"Quando começou o aumento dos sepultamentos, eu fiquei assustado. Agora já me acostumei. Sinto que está diminuindo aos poucos. Espero que isso passe logo", disse Ulisses à AFP no cemitério público Nossa Senhora Aparecida, em Manaus.
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A média diária de mortes na cidade de 2,1 milhões de habitantes passou de 30 antes da pandemia para uma centena. Manaus amarga o maior índice de mortalidade de uma capital brasileira pelo novo coronavírus, com 6.034 contágios e mais de 600 mortes até esta sexta-feira (8).
"Tenho medo de levar a doença para dentro da minha casa. Trabalho em uma área de grande risco de contaminação", afirma.
Alguns dias, ele desce os caixões para as valas comuns que começaram a ser abertas há semanas no cemitério, pouco depois de o saturado sistema de saúde não dar conta de atender dezenas de pacientes. Várias pessoas simplesmente morreram em casa, sem que as famílias saibam se foi por COVID-19 ou outra causa.
Outras vezes, este homem de estatura mediana abre túmulos individuais. Fica esgotado depois de cavar cinco.
Ulisses e um grupo de colegas coveiros também fabricam marcos e cruzes de madeira, que as famílias dos falecidos compram para identificar as tumbas de seus entes queridos. É um ganho extra para complementar seus salários.
Os marcos e as cruzes, mais baratos que uma lápide, são pintadas em azul e do próprio punho, Ulisses escreve com tinta preta o nome do finado e as datas de nascimento e morte.
Com a COVID-19, foi preciso dobrar a produção: antes, cada coveiro vendia três unidades por dia. Hoje são seis.
Com uma coragem que remete à de seu homônimo da Odisseia, este coveiro enfrenta a tragédia que se abate em Manaus e garante não ter medo da COVID-19, apesar de já ter perdido alguns amigos e vizinhos por causa da doença.
Por isso, ao final de um longo dia, Ulisses volta para casa de bicicleta e cumpre um ritual de limpeza sagrado.
"Chego em casa, tiro a minha roupa, entro no banheiro. Tomo banho e já lavo minha roupa. Só depois disso que vou abraçar minha filha e minhas netas", relata Ulisses, cuja esposa se mudou temporariamente para outro lugar para não contrair o coronavírus.