Publicado 25/04/2021 19:06 | Atualizado 25/04/2021 19:09
Florianópolis - Mesmo depois de trabalhar até os 25 anos nas plantações de milho, feijão, arroz e fumo da família em Bom Retiro (SC), casar-se cedo e ter tido três filhos em seguida, a dona de casa Marlene Hinckel nunca deixou de lado a vontade de aprender a ler e escrever. Era um sonho, como uma foto que a gente coloca no espelho do banheiro para inspirar a batalha de todo dia. Era também uma necessidade prática. No mercado, ela não sabia a diferença entre o xampu e o condicionador. A chance de aprender surgiu na pandemia. Aos 63 anos, ela está se alfabetizando nas aulas virtuais do neto de 7 anos.
A oportunidade apareceu no turbilhão de mudanças que as famílias tiveram de fazer para cuidar dos idosos, o grupo mais vulnerável no início da pandemia. A filha Karina Hinckel, de 40 anos, deixou o emprego de gerente de Enfermagem para olhar a família mais de perto. Ela passou a visitar a mãe com uma frequência maior. Embora goste de morar sozinha, dona Marlene já estava deprimida com o isolamento da pandemia. As duas estão separadas por 40 minutos. Karina também estava preocupada com a alfabetização de Eduardo, filho único. O pai, o físico Rinaldo Henrique, viaja com frequência. Foi aí que neto e avó se tornaram parceiros de escola.
O menino fazia o 1º ano do ensino fundamental na unidade Estreito do Colégio Adventista de Florianópolis. A avó ficava com um olho nele e outro nas aulas online na tela do notebook. As lições começaram a fazer sentido para os dois, ao mesmo tempo "Pensei comigo: o Eduardo, com sete aninhos, está aprendendo. Eu vou aprender também. Hoje, estou conseguindo entender as coisas". Às sextas-feiras, havia um projeto pedagógico chamado "Super Leitor" no qual as crianças liam textos que a professora escolhia. Era uma das atividades preferidas da dupla. "Ele está lendo cada dia melhor e logo aprendeu a ler e escrever. Eu ainda estou tentando. As primeiras palavras foram dado, dia, lua, dedo e casa", recorda.
De acordo com os educadores, a participação dela nas atividades online era informal, como uma espécie de aluna ouvinte. Depois, começou a perguntar. Logo estava fazendo as atividades do neto. Hoje, ela tem seu próprio caderno e seu material de estudo. A avó não começou do zero. Antes da pandemia, Marlene frequentava as aulas do Ensino de Jovens e Adultos (EJA) na Escola Municipal Batista Pereira, em Ribeirão da Ilha. As aulas foram interrompidas e ainda não têm data para retornar. "O EJA foi fundamental para tudo isso. O apoio veio da escola, das professoras, por isso que ela não quis desistir e está indo em frente", diz a filha.
Karina apoia os dois - a explicação dada para um acaba ajudando o outro. Eduardo pega rapidinho. "Passo atividade no caderno para ela fazer, principalmente para diferenciar as sílabas simples das complexas. Aí está a dificuldade maior. Como explicar 'ba', 'bra' e 'bla' para quem aprendeu a falar essas sílabas do mesmo jeito desde a infância? Para ela, todas têm o mesmo som". A própria aluna admite que o processo é lento, cheio de idas e vindas. "É muito difícil. Dá insegurança. Às vezes parece que esqueço tudo o que aprendi, mas quero muito aprender e um dia pegar um livro e ler sem precisar de alguém para me corrigir", planeja.
Passado
Em um mundo dominado pela comunicação é fácil imaginar como a sexagenária está descobrindo novas realidades. E até um novo jeito de viver. Por muitos anos, ela conta que "passou vergonha" perguntando endereços na rua mesmo estando diante do lugar aonde queria ir. Não sabia ler fachadas e letreiros. Tinha dificuldades nos ônibus, viveu pela metade. Hoje, faz as leituras religiosas em casa, ritual diário com a família, identifica os rótulos no mercado (xampu e condicionador, principalmente) e esmerilha no Whatsapp. "Aprendi a usar o celular e sei até mandar mensagem de texto. Antes era só voz", orgulha-se.
Marlene está longe de ser um caso isolado. Cerca de 16 milhões de pessoas não sabem ler nem escrever, segundo dados do Mapa do Analfabetismo no Brasil. E a maior parte dessas pessoas está acima dos 60 anos de idade. As razões são as mesmas da catarinense: o trabalho desde cedo, as poucas oportunidades e a distância das escolas. "Meus pais acharam melhor eu trabalhar na roça do que ir estudar. Era longe da escola", conta. Nesse sentido, a trajetória de Marlene é um acerto de contas com sua própria história. "Meus pais me tiraram da escola para eu ficar ajudando em casa. Eles não me deram estudo, mas eram uma boa família", resigna-se.
Hoje, os Hinckel vivem novas mudanças. Como as escolas particulares de Santa Catarina já retomaram as aulas presenciais, Eduardo voltou a se sentar nas cadeiras do colégio. Por ora, a avó perdeu seu parceiro de leitura. Mas ela continua recebendo o conteúdo pedagógico do colégio e agora conta com dois "professores" em casa. Karina conta que o neto Eduardo é exigente na hora de tirar a lição da avó.
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