A Emenda Constitucional 103, antiga PEC 6, promulgada no dia 12, além de alterar as relações previdenciárias como um todo - tempo de contribuição, cálculo de benefício, pensão por morte, entre outros pontos - , trouxe algumas "pegadinhas". Uma delas veda a contagem recíproca do tempo de contribuição mesmo as já concedidas. Ou seja, a regra é retroativa.
Mas daí o leitor pergunta: o que isso quer dizer? "Quando um servidor público - que é do Regime Público de Previdência Social - vai para o setor privado (do Regime Geral de Previdência Social) o tempo de contribuição, que são os recolhimentos mensais, devem ser computados no outro sistema para fins de contagem de tempo de serviço para aposentadoria", explica Guilherme Portanova, do escritório Portanova e Romão Advogados.
Mas, continua o especialista, com a vedação estipulada na lei, esse tempo que foi levado do serviço público para o privado e vice-versa, deixa de ser computado. Com isso aposentados que fizeram essa migração de tempo podem ter que voltar ao trabalho para completar o período que falta. "O maior problema é que a regra veda isso de forma retroativa, atacando direitos adquiridos. Isso é inconstitucional e acabará no STF (Supremo Tribunal Federal). Vedar a contagem recíproca daqui para frente é uma coisa. Mas atacar o passado quando essa possibilidade era legalmente contemplada, fere o direito adquirido e põe em xeque a segurança jurídica", alerta Portanova.
"O aposentado não pode legitimamente ser manipulado como objeto, viver em estado de insegurança continuada, pois previdência é exatamente o oposto: um serviço que exige proteção qualificada da confiança, destinado a oferecer um horizonte de futuro previsível e programado. Mudanças normativas devem e podem ocorrer no regime previdenciário, com projeção de efeitos para o futuro, calibrando o sistema em favor de sua sustentabilidade sem fraude e sem ressignificação do passado", adverte Paulo Modesto, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
O que diz o enunciado
"Art. 25. Será assegurada a contagem de tempo de contribuição fictício no Regime Geral de Previdência Social decorrente de hipóteses descritas na legislação vigente até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional para fins de concessão de aposentadoria, observando-se, a partir da sua entrada em vigor, o disposto no § 14 do art. 201 da Constituição Federal.
§ 3º Considera-se nula a aposentadoria que tenha sido concedida ou que venha a ser concedida por
Regime Próprio de Previdência Social com contagem recíproca do Regime Geral de Previdência Social mediante o cômputo de tempo de serviço sem o recolhimento da respectiva contribuição ou da correspondente indenização pelo segurado obrigatório responsável, à época do exercício da atividade, pelo recolhimento de suas próprias contribuições previdenciárias."
Até 2022, fim do governo Jair Bolsonaro, cerca de 26% dos funcionários públicos vão se aposentar. Esse quadro é considerado uma janela de oportunidade para emplacar o que está sendo considerado como uma reconfiguração do RH do Estado.
O tema mais sensível é o fim da estabilidade. Os servidores argumentam que a quebra de estabilidade, com a possibilidade de contratação por meio da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) nos primeiros dez anos, poderia abrir caminho para perseguição política de funcionários que "incomodarem" o governo de plantão.
Hoje, umas das formas de demissão no serviço público se dá no chamado estágio probatório, nos três primeiros anos da contratação. Para a equipe econômica, porém, as avaliações nesse período precisam ser reformuladas para filtrar apenas os "bons" servidores. Nos últimos quatro anos, apenas 0,3% dos servidores que ingressaram foram exonerados.
Em nota, o Ministério da Economia afirmou que a reforma administrativa será encaminhada "no momento oportuno". "As mudanças estruturais, tal como foi a nova Previdência, são sempre construídas com muito diálogo, que é exatamente o que está se buscando nesta fase final da elaboração da proposta", diz comunicado.
A ideia é fazer uma reestruturação do plano de carreiras do funcionalismo. Diagnóstico feito pelo Ministério da Economia identificou mais de 300 carreiras. A equipe econômica pretende reduzir a quantidade para 20 a 30, mas isso será feito numa segunda etapa.
Pela proposta da equipe econômica, a estabilidade seria garantida para os servidores das carreiras de Estado. Os demais seriam contratados pela CLT. Mas a definição das carreiras deverá ser discutida em regulamentação da PEC, segundo sinalizaram integrantes do governo para os sindicalistas.
"Nós estamos muito preocupados com a estabilidade. Ela não é da pessoa, é do cargo. Esse negócio de dizer que estabilidade é só para os novos não faz sentido na nossa lógica", afirma o presidente do Fórum Nacional Permanente das Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), Rudinei Marques.
Para ele, se esses novos critérios já estivessem valendo, servidores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), da Fundação Nacional do Índio (Funai), do Instituto Chico Mendes (Icmbio), da Receita e do Ibama que entraram em choque com políticas determinadas pelo presidente Jair Bolsonaro teriam sido demitidos.
Para o presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais (Unafisco), Mauro Silva, as "distorções" podem ser corrigidas de outras formas, sem a necessidade de retirar a estabilidade. Um dos caminhos, segundo ele, é maior rigor nas avaliações. "A demissão já é permitida pela lei, mas a contratação por CLT vai fomentar casos de demissão por abuso de poder e sem processo administrativo."