Publicado 10/05/2023 12:08
Rio - Oito anos após a promulgação da Lei do Feminicídio no Brasil – homicídio em razão do gênero –, a morte violenta de mulheres ainda é registrada pelo menos uma vez ao dia, segundo o terceiro relatório "Elas Vivem: dados que não se calam", elaborado pela Rede de Observatórios da Segurança, em março deste ano. Só na última semana, ao menos três feminicídios foram registrados no Rio, dois na Zona Oeste e um na Zona Norte. No triste caso de Aline da Silva de Oliveira, de 41 anos, morta a tiros na frente do próprio filho, na tarde da última sexta-feira (5), em Bangu, duas medidas protetivas chegaram a ser pedidas na 2ª Vara de Violência Doméstica, mas foram negadas pela Justiça por falta de provas.
Rebeca Servaes, advogada especialista em gênero e violência contra mulher, acredita na necessidade de uma capacitação especializada do Judiciário e dos operadores do direito para lidar com a violência contra a mulher. "A gente sabe que o Judiciário, assim como outras áreas do direito, é falho. É notória a necessidade de capacitação para além do que já é disponibilizado. Nossa sociedade é estruturalmente machista, então temos que buscar conhecimento e uma maior especialização a todo tempo. Quanto mais informações tivermos sobre esse tipo de crime, mais vamos poder atuar de forma eficiente", explicou a ex-presidente da OAB Mulheres, que continuou:
"Tanto no Judiciário, como na advocacia, no Ministério Público e na Polícia, existe uma lacuna nessa especialização quando o assunto é violência contra a mulher. Precisa haver um investimento maior nessas instituições, precisamos sempre estar nos reciclando e atualizando. A violência contra mulher é muito peculiar, específica, e é preciso uma sensibilidade e conhecimento técnico muito específico para que não façamos revitimização ou possibilite violências mais graves como o feminicídio. Apesar de ser referência, o Rio ainda tem poucas Delegacias da Mulher (Deam). É muito importante que o Estado invista nessa proteção e na capacitação de todos os órgãos para que a mulher não fique vulnerável".
Ex-Secretária Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) do Governo Lula e professora titular da faculdade de Medicina da Uerj, Stella Taquette pontua o ciclo de violência e alerta que grande parte das mulheres assassinadas já haviam feito denúncia. "Se uma mulher faz uma denúncia, ela tem que ter para onde ser levada, acolhida e protegida. A violência funciona de uma forma cíclica, onde a relação é tensa, até que o companheiro explode e comete a agressão. Depois, entra a fase de lua de mel, onde ele se arrepende, diz que não vai fazer mais, e a mulher acredita e vai levando. Até que ela vê que não tem mais jeito e resolve largar o companheiro, que a ameaça de morte. E, se ela sai de casa ou denuncia, é morta. A maioria das mulheres que foram mortas já tinham dado queixa antes", acrescentou.
Ainda de acordo com Taquette, estatísticas mostram que as vítimas são as mais vulneráveis: "As mulheres que são mortas, em sua maioria, são as mais pobres e geralmente negras. Claro que ocorre em outras classes, como no ano passado quando uma juíza foi morta pelo marido na Barra da Tijuca, mas as principais vítimas são as mais vulneráveis. A violência contra mulher é um problema gravíssimo e se não houver um empenho político, ele vai persistir. Vários dispositivos têm que ser retomados, como a campanha e divulgação do disque 180 e a criação de abrigos. A curto prazo é fortalecer as medidas protetivas às mulheres que estão em situação de violência. É preciso fazer uma política transversal de gênero em todos os setores".
Desfinanciamento e subnotificação de casos são fatores decisivos
Dados públicos apontam um desfinanciamento da área durante o governo Bolsonaro, que cortou em 90% a verba destinada para políticas de enfrentamento à violência doméstica e familiar. Segundo Cristiane Brandão, coordenadora do Observatorio Latino-americano de Justiça em Feminicídio e do grupo Pesquisa e Estudo em Violência de Gênero (PEVIGE) da UFRJ, esse foi um grande contribuidor para o aumento dos casos de feminicídio nos últimos anos. "Um dos fatores para o aumento das mortes foi não termos tido investimentos de prevenção aos casos de mortes violentas de mulheres nos últimos anos, especialmente a partir de 2016. Contudo, apesar de termos esses números demonstrando esse aumento, também temos uma subnotificação muito grande"
"Os números são levantados a partir dos registros de ocorrência que identificam, pelo olhar da justiça criminal, casos como feminicídio. Contudo, temos uma tendência no Brasil de identificar apenas o feminicídio íntimo. Mais de 90% dos casos tipificados como feminicídio falam sobre violência doméstica e familiar. Existe uma dificuldade com a identificação com os casos que acontecem em razão de menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Se compararmos os números de mortes violentas de mulheres e com os dados de feminicídio, há uma diferença estatística muito grande", pontuou Brandão.
Para a coordenadora do Observatorio Latino-americano de Justiça em Feminicídio, o número de assassinatos de mulheres é muito maior do que está sendo veiculado. "Nós temos um modelo de protocolo latino americano para investigar, processar, julgar e reparar o feminicídio, que é um protocolo da ONU Mulheres, temos diretrizes nacionais, temos o protocolo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ou seja, um conjunto normativo que indica que toda morte violenta de mulher deve ser tratada inicialmente como feminicídio, para depois, eventualmente, ser descartada essa possibilidade. Nós temos um número muito maior do que está sendo mostrado em virtude dessa subnotificação", afirmou.
Incentivo ao armamento não é fator isolado
Um relatório do Instituto Sou da Paz, em 2020, mostrou que a arma de fogo é o instrumento mais utilizado nos assassinatos de mulheres no Brasil. Cristiane Brandão, no entanto, pontua que, apesar da facilidade de acesso às armas, o uso não é fator isolado nos crimes: "O descontrole com o armamento é uma potência para qualquer forma de violência. No caso das mulheres, isso não é diferente, é um fator que contribui, mas não isoladamente, também há o registro do uso de outras armas, como perfurocortantes e até mesmo o uso de fogo. Muitos estudos apontam para a utilização desses instrumentos de uma forma premeditada, (o uso da arma) não foi uma reação impetuosa, não é caso de uma revitalização dos crimes passionais".
"Não devemos ver essa categoria inventada de crimes passionais como algo que explique ou justifique uma conduta feminicida. A passionalidade utilizada como categoria de defesa normalmente está atrelada a um ato injusto da mulher, que normalmente retrata uma culpabilização da própria vítima, que leva à revitimização, como no caso de uma tentativa de feminicídio. O direito à vida da mulher é, no fundo, um debate sobre o controle dos nossos corpos. O direito à vida é visto como um direito que está disponibilizado para todas nós, ao menos teoricamente, mas na prática nós somos muito vulnerabilizadas seja no espaço público ou privado", completou.
Disque 180 - Aviso
A Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgão competentes. O serviço também fornece informações sobre os locais de atendimento mais próximos e apropriados para cada caso: Casa da Mulher Brasileira, Centros de Referências, Delegacias de Atendimento à Mulher (Deam), Defensorias Públicas, Núcleos Integrados de Atendimento às Mulheres, entre outros.
A ligação é gratuita e o serviço funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana. São atendidas todas as pessoas que ligam relatando eventos de violência contra a mulher. Além disso, o canal tem o papel de disseminar informações voltadas para a proteção e promoção dos direitos da mulher. Caso tenha passado por uma situação ou conheça alguém que precise de ajuda, denuncie, disque 180.
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