Nova sede da Cruz Vermelha, no Centro do Rio de JaneiroPedro Ivo/Agência O Dia

Rio - A Cruz Vermelha, instituição centenária de ajuda humanitária, tenta se reerguer após dois reveses — um problema de infraestrutura que provocou a mudança da histórica sede para um edifício próximo ao localizado na Avenida Henrique Valadares, no Centro, e leilões determinados nos autos de um processo que corre na Justiça do Trabalho do Rio para o pagamento de uma dívida trabalhista. Enquanto a gestão recorre da decisão, a Cruz Vermelha segue em funcionamento em um espaço doado pela Igreja São Vicente de Paulo. Ao DIA, a gestora Flávia Aires comentou sobre a mudança e a expectativa para a retomada do antigo imóvel.
"Nosso prédio antigo está com um grande problema estrutural e a obra também requer um investimento muito alto. Eu aproveito e faço um apelo ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e a nossa comunidade, para que a gente possa ter dinheiro para voltar para nossa sede. O prédio lá tem mais de 100 anos e como todo imóvel, que não tem rotina de obra, vai se deteriorando ao longo do tempo e por questão de segurança evacuamos", detalhou.
O último leilão do prédio da instituição ocorreu no dia 24 de abril e não teve interessados, bem como o do dia 10 de março. O imóvel foi avaliado em R$ 47 milhões e o lance mínimo para arrematar a propriedade é de R$ 23,5 milhões.

O novo espaço, que fica próximo ao antigo prédio, tem a Cruz Vermelha como um comodato —um tipo de contrato que empresta gratuitamente um bem que não pode ser substituído. Anteriormente, o local funcionava como uma creche da igreja, mas não era mais utilizado há cerca de cinco anos.

Gestorada da Cruz Vermelha do Rio, Flávia Aires - Ana Fernanda Freire/O DIA
Gestorada da Cruz Vermelha do Rio, Flávia AiresAna Fernanda Freire/O DIA


Flávia relatou ainda ainda que a estrutura nova é mais simples e precisa de alguns reparos, ressaltando a importância do espaço para o funcionamento dos trabalhos institucionais.

"Essa mudança foi feita com articulação política do antigo gestor, foi ele quem entrou em contato com as irmãs. Atualmente funcionamos aqui com a nossa sede e toda a parte humanitária, além da prática de cursos livres, primeiros socorros básicos, instrumentação cirúrgica e demais cursos voltados na área da saúde", disse.
O local ainda possui desenhos infantis na parede da antiga creche e precisa de novas pinturas e conserto de infiltrações.

"Estamos muito agradecidos por estarmos aqui, mas a maior dificuldade é não ter o prédio da forma que queremos ter, principalmente a pintura, fachada etc. Até temos ar condicionado, mas é caro para tirar de lá (antigo prédio) e trazer para cá, precisamos mexer ainda na parte estrutural no sentido dos detalhes", explicou Flávia.


Prédio antigo tem valor sentimental

Uma das voluntárias da Cruz Vermelha, Mônica Guimarães Rodrigues, 58 anos, que atua há 17 anos na instituição, comentou sobre o valor sentimental do antigo endereço para todos os colaboradores.
"Ele é história, é nossa identidade. Tudo começou ali, o prédio foi fundado no dia do voluntariado. Para nós realmente foi muito difícil essa saída. Falando por mim, foi uma tristeza muito grande deixar o espaço. Estamos tentando manter a missão da instituição, porque a Cruz Vermelha é soberana. A essência da instituição é essa ajuda", lamentou.

Mônica, que é responsável pelos voluntários de psicologia, psicossocial, migração e refúgio, educação e saúde, fez um apelo para que a sociedade enxergue a instituição como um ponto de ajuda e acolhimento.
"Muitas pessoas podem enxergar a Cruz Vermelha de várias formas, mas a instituição faz um trabalho muito importante desde 1908. Quem é atendido pode não saber citar o nome das pessoas que estiveram com elas nos momentos difíceis mas, por mais de duas vezes já me disseram que, no momento em que mais precisaram, a Cruz Vermelha estava ao lado delas. Não queremos que as pessoas olhem para os presidentes ou diretores, mas para instituição e este símbolo", pediu.

Flávia lembrou ainda algumas ações importantes da Cruz Vermelha, ressaltando a missão institucional é atenuar o sofrimento humano.

"A instituição foi fundada no momento de guerra, estamos presentes em 192 países. Na guerra entre Rússia e Ucrânia nós fomos a única instituição humanitária de ajuda que pôde tirar as pessoas de lá. Nossa bandeira são os primeiros socorros. Nós temos excelência no que fazemos. Na Turquia, quando teve o terremoto, fomos os primeiros a chegar e aqui no estado do Rio estamos sempre antenados com o que está acontecendo. Nossa missão é atenuar o sofrimento humano, seja ele qualquer que for", ressaltou.

A gestora disse esperar contar com a ajuda econômica e compreensão da população. "A gente espera ajuda dos poderes públicos, porque esse prédio não podia nem ser leiloado por ser tombado pelo patrimônio histórico. Nós precisamos da população e a população precisa da gente, estamos dispostos a ajudar eles em todas as situações. Não podemos deixar o prédio fechar e nossa expectativa é uma ajuda econômica, porque sem isso não vamos conseguir", enfatizou.


Ela reforçou ainda que a antiga sede da Cruz Vermelha precisa de reestruturação e que todos os voluntários estão ansiosos para "voltar para casa". "É uma obra de estrutura, restituição, readequação e de patrimônio histórico cultural. Temos uma história muito bonita aqui. Nós formamos as enfermeiras que foram à Segunda Guerra Mundial. Nosso primeiro presidente foi o sanitarista Oswaldo Cruz, além de outras pessoas importantes que passaram por aqui. Nossa expectativa é que a gente volte para nossa casa", finalizou.

A Cruz Vermelha Brasileira foi idealizada em 1907 por Joaquim de Oliveira Botelho, que inspirou-se no exterior e quis fundar uma Sociedade da Cruz Vermelha junto a profissionais da Saúde no Rio de Janeiro. No dia 5 de dezembro de 1908 foram discutidos e aprovados os estatutos da sociedade. A data ficou consagrada como a de fundação da Cruz Vermelha Brasileira, que teve como primeiro presidente Oswaldo Cruz.
Entenda o processo de leilão

A instituição chegou a entrar com um recurso contestando o primeiro leilão já que o imóvel é tombado, mas a juíza do trabalho Aline Maria Leporaci Lopes negou o pedido e criticou a Cruz Vermelha por não garantir o pagamento do crédito ao ex-empregado em processo de 2003. Em 2012, a dívida trabalhista da ação em questão era de R$ 105,3 mil.

"A ré não apresentou qualquer impugnação ou manifestação quando devidamente intimada para ciência da penhora. Logo, rejeito a impugnação nesse aspecto. (...) Ademais, considerando-se a natureza alimentar do crédito apurado nos autos, que, diga-se, refere-se a processo do ano de 2003, e que até o presente momento a ré sequer indicou uma forma objetiva de adimplemento da parcela devida a seu ex-empregado, mantenho o leilão designado", anotou a juíza em despacho de 10 de março.
Um novo leilão está marcado para o dia 26 de junho, mas a equipe júrídica da instituição tenta evitá-lo para retomar o edifício..

Ações em andamento

A nova sede possui um espaço para leitura e oficinas, salas de aulas, laboratório, dispensa, brechó e secretarias. Segundo a gestora, o grupo costuma fazer ações, eventos com psicólogos, nutricionistas, além de receber e doar materiais de higiene e alimentação para aqueles que precisam.


A voluntária Mônica explicou ainda que equipes de psicólogos fazem atendimento gratuito por telefone. "Temos equipes de voluntários, cada um com uma expertise, e atuamos em várias frente de população vulnerável. Temos equipes do departamento psicossocial, que trabalha no Hemorio, e uma equipe de pediatria que atua no Hospital Souza Aguiar, fazendo recreação das crianças e acompanhando as mães. Só na pandemia fizemos mais de 7 mil atendimentos online com psicólogos e todos eles são voluntários. Trabalhamos como espécie de ponte para quem precisar, temos também parceria com Fraternidade Sem Fronteiras e nós enviamos doações para eles", contou.

A voluntária disse também que eles costumam trabalhar em grupos de idosos, com familiares de pessoas desaparecidas e mulheres vítimas de violência, em uma espécie de roda de conversa terapêutica, para que os grupos saibam que podem contar uns com os outras.

No local, também funciona um brechó que ajuda na arrecadação de dinheiro para ações da instituição.
"Vivemos de doação, o que dá pra vender. Vendemos e revertemos o dinheiro para atuarmos quando precisamos de combustível, passagem, entre outros. É uma das nossas fontes de renda", disse Flávia.

O espaço também possui um laboratório para formação de alunos. "Tentamos manter tudo bem próximo do que estava lá (no antigo prédio). Trouxemos tudo, mas obviamente queremos estar na nossa casa. É muito melhor estarmos na nossa casa do que em uma casa emprestada, por melhor que ela seja", complementou a gestora.
Para o voluntariado, há um curso básico de formação institucional gratuito que fala sobre o movimento internacional da Cruz Vermelha, o uso do símbolo, e apresentação da filial do Rio e de todos os departamentos. No final, quem faz o curso assina o termo de adesão e preenche uma ficha de cadastro e, a partir daí, já pode participar das atividades.

"Temos voluntários de todas as áreas, uns com formação e outros não, porque o importante é a intenção de ajudar. Temos voluntários com pós-doutorado e outros analfabetos, todos eles doam de uma forma muito importante o próprio tempo e aquilo que sabem fazer de melhor", finalizou Mônica.

Doações

A nova sede fica localizada na Avenida Henrique Valadares, número 114, no Centro do Rio. A secretaria funciona de segunda à sexta-feira, de 9h às 16h e, no sábado, de 9h às 11h.

O grupo pede material de higiene para fazer cestas de uso pessoal, como papel higiênico, pasta de dente, material de limpeza, fralda geriátrica, fralda infantil e absorvente. Os voluntários pedem alimentos não perecíveis, incluindo leite em pó, biscoito e café que, segundo eles, são itens muito difíceis de receber.
Equipe de voluntários na nova sede da Cruz Vermelha - Ana Fernanda Freire/O DIA
Equipe de voluntários na nova sede da Cruz VermelhaAna Fernanda Freire/O DIA