Por tabata.uchoa

Rio - ‘Imagina a Marcela Temer no supermercado fazendo conta de cabeça, disputando promoção de leite a R$ 3 e descascando alho antes de pesar”. A reação bem-humorada ao discurso de Michel Temer no Dia Internacional da Mulher, publicada no Facebook, foi de um homem — o designer Urbano Luciano. As mulheres não tiveram motivo para achar graça. 

'Além de absurda%2C essa fala foi inoportuna. O Dia da Mulher era para falar sobre o avanço delas'%2C diz Ronald Nunes%2C advogadoAlexandre Brum / Agência O Dia

“É um discurso que nos recoloca no que é, para o mundo machista, o nosso único lugar: em casa, cuidando dos filhos. E justo no dia que seria ideal para celebrar que lugar de mulher é onde ela quiser”, diz Milena Prado, economista do Dieese.

Na tarde de quarta-feira, Temer resolveu homenagear as mulheres na cerimônia comemorativa do Dia Internacional das Mulheres, no Palácio do Planalto. Como falou de improviso, acabou revelando sua visão sobre o papel da mulher na sociedade.

“Na economia também a mulher tem grande participação. Ninguém mais é capaz de indicar os desajustes de preços no supermercado do que mulher”, disse, num dos pontos altos.

Em outro momento, ele celebrou a melhora da economia em seu governo e ressaltou que, com isso, as mulheres ganhariam cada vez mais espaço no mercado de trabalho, “além de cuidar dos afazeres domésticos”. A fala foi tão surpreendente e a reação irada das mulheres tão previsível que deu até no ‘New York Times’: “Temer do Brasil irrita mulheres com elogio às suas habilidades no supermercado”, debochou o diário.

'Foi um discurso machista e retrógrado%2C típico do século XIX. Nós dividimos por igual todas as responsabilidades'%2C diz Reginaldo da Silva%2C biólogoAlexandre Brum / Agência O Dia

MULHER SUBALTERNA

Obviamente, as mulheres que militam pela valorização da mulher no mercado de trabalho e em outras áreas reagiram com perplexidade. “Vinda de um presidente, é uma fala que autoriza que a mulher possa ser vista como subalterna. Podemos considerar como sexismo institucional”, diz a pesquisadora Jackeline Romio, mestre em demografia pela Unicamp, que, no entanto, considerou a fala “previsível”.

E a condição ‘subalterna’ da mulher, que se reflete na desigualdade entre o tempo dedicado aos “afazeres domésticos”, é captada nas pesquisas. A Pnad, do IBGE, mostrou que as mulheres dedicam 20 horas e 30 minutos semanais aos cuidados da casa, mais do que o dobro dos homens. Isso faz com que a média semanal de trabalho delas seja de 55 horas, contra 50 horas e 30 minutos deles.

“O Estado não oferece às mulheres os equipamentos necessários para que possam ter uma jornada menos extenuante e consigam competir de forma mais igualitária, como escolas de tempo integral e creches”, explica Milena.

'Na economia também a mulher tem grande participação. Ninguém mais é capaz de indicar os desajustes de preços no supermercado do que a mulher'%2C disse TemerBeto Barata / Efe

Eles e elas entendem de supermercado e de igualdade

Cláudia Vianna, funcionária pública de 52 anos, e Reginaldo Henrique Silva, biólogo, de 49, são um casal normal. Na sexta-feira, faziam compras juntos num supermercado da Tijuca. Diferentemente do que acredita o presidente Temer, Reginaldo tinha a palavra final na escolha dos produtos. “Cláudia tem uma carga horária mais pesada no emprego dela do que eu. Acaba que eu entendo mais os preços”.

O presidente acharia mais estranho ainda o fato de que “os afazeres domésticos” do casal são responsabilidade de ambos. “Como ela gosta de cozinhar, eu lavo louça. Na hora da faxina, as tarefas são divididas”, conta Reginaldo, para quem as declarações de Temer foram “machistas e retrógradas”.

Cláudia confirma a divisão de tarefas. “Ambos temos jornada pesada. A fala dele (presidente) colocou de uma forma em que primeiro vem o emprego do homem, depois o da mulher. E não é nada disso”.

Ronald Nunes, 25 anos, e Raquel Pinheiro, 27, advogados, na seção de carnes do supermercado, se mostravam perplexos. “Achei um absurdo. Eu não sei o que ele queria com essa declaração”, diz Raquel, com a concordância de Ronald, que, em acordo familiar cada vez mais comum, faz o que sabe melhor em casa. É exímio lavador de louças e põe a mesa com capricho.

Violência e salários mais baixos

“Logo no Dia Internacional da Mulher! Ele perdeu a chance, por exemplo, de defender a convenção sobre a igualdade de remuneração entre homens e mulheres da OIT, que o Brasil ratificou, mas está longe de cumprir”, diz Milena. “É papel de um presidente promover essa igualdade. Temos experimentado mudanças, mas o estupro, a violência contra as mulheres, continua em níveis altíssimos. E, no mundo do trabalho, os salários ainda são 20% menores do que os dos homens na mesma posição, ainda que o nível de escolarização feminino hoje seja maior do que o masculino”.

Para Jackeline Romio, falas como as de Temer “evocam a possibilidade de explorar os trabalhos referentes aos cuidados do lar e dos filhos”. Essa naturalização da exploração fica muito patente quando os homens dizem que “ajudam nas tarefas de casa”. “A responsabilidade, nessa visão, continua sendo da mulher e não dos dois”, ressalta Milena.

Nesse contexto, as palavras de Temer foram recebidas como um passo atrás. “Temos que reforçar discursos e ações que celebrem tanto as conquistas que existem, sem esquecer ou ignorar as enormes desigualdades que ainda persistem na vida das famílias”, diz a demógrafa Glaucia Marcondes, pesquisadora da Unicamp. 

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