Presidente Jair Bolsonaro - Marcos Correa/Presidência da República
Presidente Jair BolsonaroMarcos Correa/Presidência da República
Por iG
Brasília - As constantes crises políticas do governo Bolsonaro - como a demissão de três ministros importantes no intervalo de um mês -, a queda do apoio popular e os ataques sucessivos aos demais poderes, instalam um ambiente de instabilidade política e abrem margem para a discussão sobre a abertura de um processo de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) .
No entanto, o esvaziamento político e a perda de apoio não são suficientes para depor o líder do executivo. Para isso, é preciso que o mandatário tenha cometido um crime de responsabilidade .
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A Lei nº 1079, de 10 de abril de 1950, é responsável por tipificar os crimes de responsabilidade. O Brasil teve dois presidentes enquadrados nesta lei, Fernando Collor de Mello e Dilma Roussef, porém os chefes do executivo não são os únicos agentes políticos que podem ser penalizados com a perda do cargo caso cometam essa infração.
Ministros de Estado, ministros do Supremo Tribunal Federal e o Procurador Geral da República estão passíveis de pena de perda de cargo e inabilitação, por até 5 anos, para exercício de qualquer função pública, caso venham a ser enquadrados em violações da lei.
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Rubens Baçek é doutor em Direito Constitucional e Teoria do Estado e professor associado da Universidade de São Paulo (USP). Ele define crimes de responsabilidade como “aspectos que, do ponto de vista da ação política, são considerados como ilícitos, também do ponto de vista da fixação da responsabilidade daqueles mandatários”.
“A lei dos crimes de responsabilidade trabalha com o desvio de finalidade. O mandatário, o agente político, trabalhando em descompasso com aquilo que se espera dele, seja para uma atividade particular, para uma atividade que não se espera dele ou contra a existência da união e das instituições. Essa lei se diferencia dos ilícitos administrativos e civis, são tratados os aspectos dos ilícitos políticos ”, explica Baçek.
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Para se cometer um crime de responsabilidade é necessário violar ao menos um dos oito incisos do Artigo 4º da Lei, que falam sobre atentar contra:
-a existência da União;
-o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados;
-o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
-a segurança interna do país;
-a probidade na administração;
-a lei orçamentária;
-a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos;
-o cumprimento das decisões judiciárias (Constituição, artigo 89).
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A autorização da divulgação do vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abri,l pelo ministro do STF, Celso de Mello, na última sexta-feira (22) foi compreendida com o ponto alto da crise política do governo Bolsonaro. Em meio aos xingamentos, às declarações ríspidas e aos ataques aos demais poderes, desferidos durante a reunião, políticos e juristas passaram à identificar crimes de responsabilidade nas falas de Bolsonaro e dos ministros.
Órgão do Ministério Público Federal viu crimes de responsabilidade nas falas do ministro do Meio Ambiente , Ricardo Salles , sobre "ir passando a boiada", em relação aos despachos da pasta que poderiam gerar polêmicas, mas que não seriam repercutidos pela imprensa por conta do novo coronavírus (Sars-Cov-2).
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Ou então, o Procurador de Justiça em São Paulo e presidente do instituto “Não Aceito Corrupção”, Roberto Livianu, que identificou crime de responsabilidade nas falas divulgadas do presidente Bolsonaro, que apontariam obstrução da Justiça e da atuação de outros entes federativos. Para Livianu, o vídeo comprova a tese que Bolsonaro tentou interferir na Polícia Federal.
Mas para o professor Baçek não há fato jurídico que enquadre o presidente e dê margem para a abertura de um processo de impeachment. “Eu não vejo nada ali por parte do presidente da República contra as instituições. Isso [a reunião] está em um ambiente fechado. A lei não prevê enquadrar falas deploráveis como crime de responsabilidade”, explica o doutor.
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Baçek aponta que tanto as falas do presidente da República quanto dos ministros de Estado "não se refletiram em ações políticas" para que fossem enquadras na lei. No entanto, o professor de Direito Constitucional aponta que a fala do presidente sobre a possível constituição de um poder paralelo para colher informações e as interferências nas investigações da Polícia Federal, caso provadas, podem definir crime de responsabilidade por atentar contra a segurança interna do país e a probidade administrativa.
"Se ficar provado que ele está montando um estrutura paralela, seja de informações, de segurança institucional ou de investigações, isto é algo que fica enquadrado [na lei]. A eventual criação de uma milícia ou serviço paralelo atenta contra a segurança, porque os poderes são exercidos através daquilo que está constituído", explica.
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Uso político da ferramenta jurídica
O professor Baçek revela preocupação quanto à possibilidade do uso da ferramenta jurídica da Lei de Crime de Responsabilidade para operar um movimento político contra o presidente da República, como ele afirma ter sido feito contra a ex-presidente Dilma Roussef, que apesar da comprovação da realização das pedaladas fiscais, não se enquadra na lei.
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“Eu ainda não vejo nada do ponto de vista legal, do ponto de vista constitucional, que dê margem para um impeachment. É muito mais a vontade de tirar o presidente que está prosperando. A gente pode não gostar, mas foi eleito de acordo com as regras do jogo", diz.
“Se não forem crimes de responsabilidade a juízo da Câmara, ela não pode ir além. O impeachment não é uma causa de remoção do presidente da República para quando haja descontentamento. Às vezes, o descontentamento é muito grande e a gente ouve as pessoas falarem ‘se não der certo, tira’ e não é bem assim. Precisamos separar os gostares do que está previsto na lei. Ela é muito específica”, complementa.
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Baçek não vê crimes por parte de Bolsonaro durante o pouco mais de um ano em que governa o Brasil, mesmo considerando as atitudes do presidente equivocadas e despropositadas, por exemplo ao apoiar manifestações antidemocráticas.
Ele entende que não é motivo suficiente para impedir o exercício do mandato, mas admite que os fatos da reunião ministerial podem ser futuramente usados como prova para abrir o impeachment contra o presidente.
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“Isto [o vídeo da reunião ministerial] vai provocar, provavelmente, a invocação dos crimes de responsabilidade, mas eu temo que ela será usada erroneamente, outra vez, como feito em um governo de outro espectro”, aponta.
Contexto histórico da criação da Lei dos Crimes de Responsabilidade
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A lei 1.079 foi criada em 1950 durante o governo do presidente Eurico Gaspar Dutra, após inúmeros conflitos originados por um ambiente político tumultuado, após a deposição de Getúlio Vargas, na segunda metade da década de 1940.
O impeachment faz parte da política brasileira desde o nascimento da República, mas “faltava uma lei para detalhar aquilo que já vinha previsto na constituição republicana de 1891”, como explica o professor Rubens Baçek.
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Neste contexto de agitação política em 1950, com o próprio Getúlio Vargas concorrendo novamente à Presidência, juristas consagrados, como Afonso Arinos, mobilizaram a votação do projeto lei na Câmara dos Deputados e criaram os crimes de responsabilidade, muito inspirados pelo direito político norte-americano.
“Os debates apareceram muito em outras ocasiões da história brasileira, eu diria, em primeiro lugar, por conta de uma influência que o direito político brasileiro sofreu, especialmente na fase da implantação da República dos Estados Unidos da América”, explica Baçek.
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Baçek conta que o mundo político tentou utilizar a lei pela primeira vez pouco tempo depois da sua criação, durante o primeiro semestre de 1954, quando governava Getúlio Vargas, dessa vez eleito democraticamente.
O processo de impeachment de Vargas chegou a ser votado na Câmara dos Deputados, mas foi rejeitado pelos parlamentares, que não conseguiram enquadrar o presidente no crime de improbidade administrativa.
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A Lei se consolidou e foi ser discutida novamente durante a reconstitucionalização em 1988. Naquele momento, o meio jurídico discutia se as leis em vigor antes da Constituição deixariam de existir ou se passariam a ser entendidas como parte do sistema .
O debate sobre o uso da lei se torna intenso durante o processo de impeachment do ex-presidente Collor, até que o STF chega ao entendimento de que a lei é válida por conta de um fenômeno do direito chamado "recepção", que define que a lei anterior pode ser utilizada desde que não conflita com a constituição.