Luiz Henrique Mandetta fez duras críticas à forma que o governo federal conduziu a pandemia
Luiz Henrique Mandetta fez duras críticas à forma que o governo federal conduziu a pandemiaMarcello Casal JrAgência Brasil
Por Fernando Faria
Ex-ministro da Saúde do governo Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta ganhou os holofotes da nação há um ano, quando passou a fazer parte cotidianamente do noticiário com a chegada ao Brasil do novo coronavírus. Médico ortopedista nascido em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, há 56 anos, Mandetta assumia ali a condução da maior crise sanitária na história do Brasil. Com voz pausada, informações precisas e sinceras, foi conquistando prestígio e passando confiança. No entanto, despertou a ira do presidente da República, enciumado com o fato de um ministro estar tendo tanto destaque, e caiu no caldeirão fervente da fritura política. Foi demitido com a popularidade lá em cima, tanto que se coloca no páreo da sucessão presidencial. Um ano depois, Mandetta fala nesta entrevista que o país está à beira do colapso na Saúde, sem comando, sem vacinas suficientes. E projeta ainda para este mês um salto assustador do número de casos na Região Sudeste.
Estamos completando um ano de pandemia e vemos que a situação se agrava cada vez mais. O tsunami foi maior do que o senhor esperava?
A gente vai aprendendo com essa doença à medida que ela vai acontecendo. A gente precisava montar o SUS. A doença chegou pela classe rica, de gente que vinha da Europa. Não tinha chegado ao povão. Naquele momento, era frear para não ter morte por desassistência, construir eixos de prevenção, conduta médica e de saída, como os testes rápidos, talvez um remédio e, claro, a vacina. Todos os eixos foram mal conduzidos e o vírus ganhou um espaço muito grande. Com as eleições municipais, por exemplo, as cidades pequenas e médias se contaminaram e, com muita transmissão, foram aparecendo as mutações, como o caso de Manaus. Com o colapso na Saúde, tiraram as pessoas de lá de qualquer jeito e acabaram espalhando o vírus ainda mais. Hoje a situação é difícil: o que vemos é desorganização, boicote à prevenção, carência de vacinas, cepas novas e uma população fatigada, sem auxílio financeiro. Neste semestre vai piorar ainda mais. O número de mortes deve beirar os três mil em algum momento de março. O Sudeste tem 100 milhões de pessoas e ainda não pegou a espiral de alta da doença. Em 15, 20 dias, o Sudeste deve transbordar de casos.
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Eu me recordo que no começo da pandemia o senhor mencionou que, se o Brasil fizesse tudo errado no combate ao coronavírus, poderíamos ter 180 mil mortos. E, infelizmente, já passamos de 250 mil. Fizemos mesmo tudo errado?
Fiz o cenário para 2020 e eles acharam que eu estava fora do meu juízo. O vírus é coletivo, ataca tudo ao mesmo tempo (ciência, economia, trabalho, esporte...) o colapso é generalizado. As crianças fora da escola são uma bomba de efeito retardado, perdem um tempo irreparável.
Na sua opinião, em quanto o comportamento do presidente Jair Bolsonaro prejudicou ou ainda prejudica o combate à covid?
Uma doença que é coletiva você só consegue combater com uma resposta positiva. É preciso ter liderança. O governo queria fazer de conta que não era nada, e nós no Ministério da Saúde conseguimos dar uma diretriz e isso incomodou o presidente. Ele foi e é a liderança, a voz do país. Não sei se, por uma lógica política, acho que essa é a razão, trabalha para dividir e fragmentar tudo, imprensa, saúde... Ele fez uma opção política e diz que não é problema dele, é do Congresso, do Supremo, dos governadores e prefeitos. Ele tenta manter a sua base de radicais. Esse comportamento do presidente desestabiliza, não deixa ninguém trabalhar, nem o mais competente ministro do mundo. Isso aconteceu comigo, não abri mão dos valores e princípios e essa foi a razão para a troca. Hoje, temos um ministro da Saúde (general Eduardo Pazuello) que anda armado.
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Como o senhor interpreta o empenho do presidente por soluções mirabolantes e tratamentos ineficazes, como a insistência no uso da cloroquina?
É parte de uma estratégia política, é natural do ser humano querer acreditar numa solução rápida indolor. Por isso, ele fala em cloroquina, spray de Israel, sempre vai estar procurando uma solução mágica. Mas o trabalho de ser republicano, de elogiar um governador do Nordeste de outro partido, por exemplo, ele é incapaz de fazer. O Brasil já tem mais de 260 mil mortos. O Exército conta com 250 mil homens. Se o presidente Bolsonaro liderasse uma guerra, teríamos perdido todos. É como você não dar armas e instrumentos para os seus soldados, aniquilar suas tropas, e continuar dando ordem e sacrificando a vida de todos.
Apostar na divisão, na sua avaliação, faz parte da estratégia do presidente para governar?
Só na questão da Saúde o presidente cometeu vários crimes: gastou dinheiro público em ações sem fundamento, boicotou vacinas, estimulou aglomerações, só para citar alguns. Tudo isso tem a lógica de aumentar o apoio de determinada parcela da população. Isso impede a união. O presidente trabalha para dividir. Temos uma sociedade que virou uma série de becos e vielas, cada um com um ódio particular a alguém ou alguma coisa.
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Como ministro, o senhor jamais escondeu as dificuldades do combate à covid e virou presença constante na casa dos brasileiros, com esclarecimentos e conselhos...
O governo era inerte na questão da covid. Não fazia uma campanha de esclarecimento, estimulando as medidas a serem tomadas. Por isso, de certa forma, assumi esse papel. Na Medicina, se você não pode curar a doença, controle, e, se não pode curar e controlar, conforte, esteja do lado das pessoas. Essa é a missão. O presidente propôs uma cura que não existia, um descontrole e não houve nenhuma solidariedade com as famílias, que perderam o seu direito ao luto, ao velório, a uma despedida. Ele ofendeu os três princípios da saúde do ser humano. Não consegue compreender que a doença está mexendo com famílias. Não temos zelo à vida, quem morre parece estar sendo descartável. Fala-se do idoso como se ele fosse menor. Quando um idoso morre, perde-se o conhecimento acumulado, a cultura, a memória.
As vacinas chegaram, mas o Brasil patina nessa questão. Como o senhor vê o atual trabalho do Ministério da Saúde?
Eu fico perplexo. O ministério, certamente, não pode ter todas as soluções, mas não pode criar os problemas. As vacinas poderiam ter sido negociadas em agosto ou setembro, mas nada fizemos, e teríamos uma situação muito melhor agora. Real mesmo, por enquanto, só a produção do Butantan, numa escala ainda inferior à necessidade. A Fiocruz vem tentando colocar de pé a produção, o que não é simples. O Brasil tinha o Covax Facilit e poderia ter encomendado 50% da sua necessidade de doses. Inicialmente, disse que não queria e, depois, só encomendou 10%. Vamos conseguir vacinas em boa quantidade a partir de junho, julho ou agosto. E a gente deve colher os frutos lá para outubro. Essa é a luz no fim do túnel. Quando temos uma situação descontrolada, como agora, a chance das variantes aumenta extraordinariamente. Isso aconteceu em Manaus por causa da primeira onda. Há transmissão enorme hoje no Sul do Brasil. O Sudeste com 100 milhões de pessoas deve entrar agora. A chance de o Brasil ser um produtor mundial de variantes é imenso e isso pode até mesmo ameaçar as vacinas. A vacina tem que vir junto com a diminuição da circulação do vírus. Estamos vivendo uma loteria biológica no Brasil.
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Como foi ser ministro do governo Bolsonaro?
Eu fui chamado para fazer um trabalho técnico e achei que era possível. Inicialmente, me concentrei no SUS, sobretudo com a fragilidade no Rio de Janeiro. Quando veio a covid, eu tinha uma equipe técnica, de pura ciência. Aí foi o divisor de águas. Nas reuniões com o presidente, eram muitas gargalhadas e pouca discussão séria. Eu permaneci para reorganizar o sistema até que ele me tirasse porque deixei claro que não pediria demissão.
E quais são os projetos do senhor para 2022?
Ser um cidadão na sua plenitude, vou escutar o meu coração. Se vou ser candidato à Presidência da República, o tempo vai dizer. Quero estar do lado do que entendo que é importante para o meu país. Se tiver que ser porta-voz, eu vou ser. O meu partido tem que discutir com todos os setores da sociedade, se terá candidatura própria... Temos que trabalhar pela verdade, pela luz, longe das trevas.
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Que mensagem o senhor gostaria de deixar aos brasileiros neste momento de tanta incerteza e dificuldade?
Desejo confortar as famílias e os profissionais de saúde. Nenhum país perdeu tantos profissionais quanto o Brasil. Esse povo não tem carinho nem reconhecimento do governo. Vamos nos unir, fazer o certo, acelerar as vacinas e sair dessa juntos e mais fortes. A reconstrução do Brasil ainda vai dar muito trabalho.