Drauzio Varella, médico e escritorYoutube/Reprodução

Por Fernando Faria
Aos 77 anos, o paulista Antônio Drauzio Varella é uma das vozes mais atuantes do país em questões na área de saúde. Médico oncologista formado pela Universidade de São Paulo (USP), foi um dos pioneiros no tratamento da Aids. Também escritor, o Doutor Drauzio, como tornou-se conhecido, é um dos profissionais que estão na cruzada pela vida, que fazem apelos cotidianos à população diante do terror do dramático avanço da covid e da nefasta ação dos negacionistas. Nesta entrevista, ele critica de forma veemente a condução da crise sanitária pelo presidente Jair Bolsonaro, diz que o general Eduardo Pazuello está perdido à frente do Ministério da Saúde e adverte que, por falta de ações e de vacinas, os brasileiros tornaram-se párias no mundo.
Chegamos ao pior momento da pandemia, com as mortes diárias no país em escalada assustadora. Na avaliação do senhor, isso é resultado direto da forma como a crise vem sendo conduzida?
Não há dúvida. Nós temos um tempo suficiente de epidemia para o que está ocorrendo ser consequência do mau controle. Já no início de fevereiro de 2020, quando a epidemia chegou à Itália, tivemos a ideia do que viria, pela liberdade da informação. Ficou claro que as consequências poderiam ser trágicas. Nessa hora você tem que ter uma coordenação central, um país em que o governo federal coordene o esforço, e a responsabilidade é do Ministério da Saúde. Do contrário, fica a cargo de cada um. E aí os governadores, os prefeitos, cada um faz do seu jeito, você perde o controle. O presidente da República partiu do princípio de que era preciso defender a economia e, se não fôssemos às ruas, perderíamos mais gente por fome. Que país do mundo fez isso? Só ele estaria certo. Teria ao menos que ter dado alguns sinais, como usar máscaras, não aglomerar. Essa seria a posição lógica. Ele fez o contrário e, não satisfeito, deu e vem dando péssimos exemplos. Parece estar afrontando não sei quem. Ele deixou a população às voltas com mensagens dúbias, só confundiu.
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Durante todo o tempo, o presidente Jair Bolsonaro fez questão de menosprezar o potencial da doença. O senhor mesmo foi vítima de ironia em cadeia nacional de rádio e tevê no famoso pronunciamento da 'gripezinha'. Foi muito difícil lidar com aquela situação?
Lamentei não por mim, porque fiz o que muitas autoridades médicas fizeram. Eu me baseei nos dados que chegavam da China, da Organização Mundial da Saúde e na opinião de especialistas. Anthony Fauci (especialista americano) falava o mesmo que eu. Tiramos o vídeo do ar quando a situação na Itália mostrou que a doença estava mal avaliada. E aí eles resgataram esse vídeo fora de contexto. À época não havia caso no Brasil. E usaram isso com intencionalidade política. Por que usar aquilo? A atuação dele foi um desastre e ele tenta o tempo todo jogar a culpa nos outros, nos governadores, no Supremo. A culpa não é exclusiva dele. Os brasileiros têm culpa, porque se aglomeram e fazem festas clandestinas. Mas o maior responsável, sem dúvida, é o presidente da República. Ele é o líder do país.
Os falsos tratamentos preventivos, as curas milagrosas, os medicamentos ineficazes atrapalham demais o trabalho dos profissionais de saúde?
Fiquei sempre muito interessado em saber qual é a lógica de defender essas medicações. Qualquer médico com um mínimo de informação sabe que eles não agem, não é que a gente não saiba. A cloroquina não age. Quem não quer um remédio barato para resolver o problema? O mundo procura isso. Aí veio a ivermectina. E isso tudo correu pela internet. O próprio laboratório negou, apesar de ter demorado. Criamos essa loucura que foi o kit covid, distribuído por unidades básicas de saúde do país. Isso é um crime contra a população.
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Como médico, o senhor não vem economizando nos alertas, alguns de forma dura. A situação no país tende a piorar muito nas próximas semanas?
Infelizmente, tende a piorar ainda. Acho que ainda não estamos vivendo os piores momentos. As pessoas que não têm relação com a Medicina não entendem direito o que é um colapso na rede de saúde. Várias capitais estão em colapso, não têm condições de atender mais ninguém. As outras doenças continuam acontecendo. Chegam vítimas de acidentes de trânsito, de infarto, e não há vaga. Os doentes não morrem só de covid. Essa situação cria um problema insolúvel. Os recursos são limitados. É como enxugar gelo. As demandas aumentam num intervalo de tempo muito pequeno, o período de internação pela covid é muito longo.
Imagino o quanto seja difícil para um médico lidar com uma doença tão cruel, em que profissionais e pacientes convivam o tempo todo com o medo...
Não temos profissionais em número suficiente para esse desafio. Não há intensivistas, que é uma especialidade. Eles trabalham com drogas que o médico comum não domina, é necessário uma série de profissionais especializados. O Brasil não dispõe dessa infra-estrutura, que salva vidas. Na UTI, a doença tem índice de 60% a 70% de mortalidade. Num hospital com um atendimento de excelência, a mortalidade cai para 12%. Faltam equipes e profissionais preparados.
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Quem cursa Medicina se prepara para as dificuldades da profissão, mas a impossibilidade do socorro por falta de vaga é algo muito cruel...
Sem dúvida. A única alternativa para este momento de dor é tentar reduzir a quantidade de pessoas doentes. Não há jeito. E como reduzir? Adotando medidas preventivas, como máscaras, não promover aglomerações. É preciso cuidados básicos, mas as pessoas não respeitam e se expõem de forma irresponsável, fazem festas clandestinas e sabem que estão se arriscando. Se levam o risco da morte para os próprios familiares, que dirá se preocupar com a sociedade.
Como o senhor avalia o trabalho do Ministério da Saúde sob o comando do general Eduardo Pazuello?
O ministro, algum tempo depois de assumir, falou que não conhecia o SUS, que sempre usava hospitais militares e não fazia nem ideia do que era. Tivemos bons ministros que não eram médicos, essa não é a questão. O SUS é o maior sistema universal de saúde do mundo, é de uma tremenda complexidade. E mostra agora para que existe. Então, o ministro não pode desconhecer isso. Aí você pega um militar, que pode ser competente na própria área, e tira uma porção de técnicos de alta competência, por razões ideológicas, e os substitui por gente que não entende nada. Nós desarticulamos o Ministério da Saúde e o que há lá é um militar para obedecer as ordens do presidente da República, que nada conhece, é prepotente e toma medidas que na práticas são completamente absurdas.
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Depois da inércia e até mesmo do boicote às vacinas, o governo federal dá alguns sinais de que vai se mexer. É possível recuperar o tempo perdido?
De jeito nenhum, o que passou, passou. Nós não teríamos 270 mil mortos no país neste momento. Essa é a opinião de todos os epidemiologistas. Todos. Faltou coordenação. Só podemos sair dessa com vacina. Nosso programa de imunização é um dos maiores do mundo. Chegamos a vacinar 18 milhões de crianças contra a pólio num dia. Na epidemia da gripe suína, vacinamos 89 milhões de brasileiros em três meses, um milhão por dia. Agora é a primeira epidemia que a gente enfrenta sem ter vacina. Fazemos isso a conta-gotas, com cada estado fazendo o que lhe dá na cabeça porque falta coordenação. O Ministério da Saúde está mais perdido do que cego em tiroteio. As diretrizes têm que vir de lá e cada um faz de um jeito. Cada prefeito dá a sua prioridade, vacina quem bem entende...
As variantes do coronavírus assustam o mundo e podem colocar em risco até mesmo as vacinas. Neste momento, o Brasil passa a ser uma ameaça global?
Quanto mais tempo dura a epidemia, mais há probabilidade de surgirem variantes. Isso acontece de forma aleatória. E nesse grande número você acaba separando aquelas que têm mais facilidade de contágio, por exemplo. Isso está acontecendo no Brasil e vai continuar acontecendo. E ninguém sabe ainda as consequências, não há tempo para avaliar se as variantes podem ser controladas. Os estudos são incipientes. O mundo inteiro tem essa preocupação. De alguma forma nos transformamos em párias (excluídos da sociedade) no meio da pandemia. O Brasil tem 212 milhões de habitantes, com fronteiras com quase todos os países da América do Sul.O mundo não quer um país do tamanho do nosso com a epidemia correndo solta e sem perspectiva de controle.
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A Medicina trabalha com um horizonte? É possível projetar quando o Brasil e o mundo poderão voltar à tão sonhada normalidade?
O mundo só vai ter tranquilidade quando o vírus for eliminado. Enquanto existirem bolsões por aí, nós vamos correr risco. Talvez nunca mais a gente fique livre do coronavírus. Não se consegue vacinar todas as pessoas por dificuldades técnicas, regionais e por causa dos idiotas dos movimentos antivacina. O vírus vai persistir. Quanto tempo vai durar a vacinação, é impossível dizer. Vamos torcer para que a gente tenha uma imunidade duradoura, mas é possível que tenhamos vacinações anuais. Infelizmente ainda vai morrer muita gente aqui, porque o vírus avança em grande velocidade e a vacinação é lenta. Há epidemiologistas que calculam que seremos o país com o maior número de mortes no mundo (os EUA têm quase 540 mil). Os Estados Unidos vacinam três milhões de pessoas por dia e a mortalidade lá vai cair muito. Nós vamos levar muito tempo para controlar. E as repercussões na economia são péssimas. É preciso vacinar a população. Nós médicos falamos isso há tanto tempo e ninguém agiu. E agora o ministro Paulo Guedes fala que, sem vacina, não se pode garantir o crescimento. Mas só agora? O Brasil não trabalhou pelas vacinas. Sem vacinas, não há solução.
Que recomendações o senhor faria aos brasileiros para as próximas semanas e meses de epidemia?
Pelo ritmo das vacinações, não dá para esperar um controle a curto prazo. Talvez a médio e longo prazos. O momento é gravíssimo. Precisamos fazer o básico: saiu de casa, coloque a máscara. É desconfortável, mas não há jeito. O profissional de saúde também não gosta de usar máscara, mas tem que usar. É importante evitar aglomerações, festas, mesmo que com pouca gente, em família. Não é hora para isso. É preciso paciência e responsabilidade. Estão morrendo mais de 2 mil brasileiros por dia. O problema é que a nossa sociedade banalizou a violência. Em vários países, a morte de uma criança por bala perdida derrubaria governos. Aqui isso acontece a todo momento.