É falsa afirmação de que Lula tenha roubado ouro da Serra PeladaArte/Comprova
Onde foi publicado: TikTok e YouTube.
Conclusão do Comprova: É falso um vídeo publicado no TikTok em que um homem acusa o ex-presidente Lula de ter roubado, junto com a Vale e a mineradora canadense Colossus, 350 mil toneladas de ouro e diamantes retirados de Serra Pelada, na Província Mineral dos Carajás, em Curionópolis, no Pará. Ainda de acordo com o homem que aparece no vídeo, o minério “foi para a mão de Lula”, que mandou “R$ 200 milhões para a Venezuela”. Entretanto, não houve no local retirada de ouro ou mesmo diamantes durante o governo Lula, nem depois dele, de acordo com a Agência Nacional de Mineração (ANM). Além disso, todo ouro retirado de Serra Pelada desde que o metal precioso foi descoberto no garimpo, em 1979, não chega a 1% do que o autor do vídeo alega ter sido roubado pelo petista.
De acordo com dados do Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS) publicados em 2020 pela BBC, o estoque subterrâneo de ouro ainda existente no mundo é estimado em 50 mil toneladas, enquanto outras 190 mil toneladas já teriam sido extraídas de todo o planeta. Para que a alegação do vídeo fosse verdadeira, o ex-presidente Lula precisaria ter roubado em Serra Pelada todo o ouro já extraído em minas do mundo inteiro, mais as 50 mil toneladas que ainda restam, somadas a outras 110 mil toneladas do metal precioso.
O auge da extração de ouro em Serra Pelada ocorreu na década de 1980. Em 1979, um trabalhador de uma fazenda local descobriu uma pepita de ouro e a informação se espalhou rapidamente. Ao longo de toda a década de 1980, segundo dados divulgados em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), foram extraídas 42 toneladas de ouro de Serra Pelada. A retirada caiu consideravelmente em 1990, quando apenas 250 quilos foram garimpados. Em 1991, um decreto do então presidente Fernando Collor de Mello determinou o fechamento da mina de Serra Pelada, considerado o maior garimpo a céu aberto do mundo, a partir de fevereiro de 1992. O decreto foi revogado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) em agosto de 2020.
Ao longo do vídeo no TikTok, o homem não explica de onde tirou os números mencionados, nem apresenta provas das acusações. Um canal no YouTube usou o mesmo material e tentou “provar” as acusações com prints de reportagens publicadas na imprensa, mas nenhuma delas de fato prova que Lula, a Vale ou a empresa canadense tenham desaparecido com 350 mil toneladas de ouro e diamantes. Sobre os R$ 200 milhões enviados para a Venezuela, o canal usa informações sobre débitos do governo venezuelano ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), sem relação com o ouro de Serra Pelada.
Ele também usa informações enganosas sobre um “roubo” de R$ 11 bilhões e mente ao afirmar que pesquisas eleitorais não falam a verdade, uma vez que enquetes on-line apontam a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.
O Comprova classificou este conteúdo como falso porque ele foi inventado de modo deliberado para espalhar uma mentira.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos de maior alcance nas redes sociais. O post feito no TikTok em 14 de maio registrou, até o dia 30 do mesmo mês, 19,7 mil curtidas, 1.733 comentários e 16,3 mil compartilhamentos. No YouTube, onde o vídeo foi postado no dia 23, havia 15,15 mil visualizações, 2,9 mil curtidas e 115 comentários até a mesma data.
O que diz o autor da publicação: No TikTok não é possível contato com os usuários, mas o Comprova localizou o perfil do autor no Instagram e enviou mensagem direta, que não foi respondida. No YouTube, o responsável pela postagem não se identifica. Na aba “sobre”, há links para duas contas, uma no Twitter que está suspensa, e outra de uma usuária do Facebook. O Comprova enviou mensagens para ela, questionando se possui ligação com a página no YouTube, mas também não houve resposta.
Como verificamos: Para fazer esta checagem, o Comprova pesquisou sobre o garimpo de ouro em Serra Pelada, a quantidade do metal já retirado de lá e a situação atual do garimpo no local. Também foram feitas buscas envolvendo os valores citados no vídeo, o nome do ex-presidente Lula, da Vale, da cooperativa de garimpeiros de Serra Pelada, a Coomigasp, e de uma “mineradora canadense”, o que levou à Colossus Minerals, empresa que chegou ao Sul do Pará em 2007, pouco depois de ter sido criada, em 2006.
As pesquisas por publicações na imprensa levaram a pelo menos duas grandes reportagens – um especial de 2017 da Folha de S.Paulo com fotografias de Sebastião Salgado e dados sobre a mineração no local, e uma denúncia de 2010 do Estadão que mostrou um esquema liderado pelo ex-senador e ex-ministro de Minas e Energia Edison Lobão para reabrir a mina com a participação da canadense Colossus Minerals. Lobão, que foi ministro de Lula, negou ter feito um esquema. A reportagem, publicada ao longo de algumas edições de julho de 2010, cita o ex-presidente Lula apenas duas vezes: uma para dizer que ele desmarcou duas visitas ao local por entender que o projeto era desfavorável aos garimpeiros e deixava praticamente todo o ouro nas mãos da empresa canadense, e outra para afirmar que ele disse ser questão de honra para seu governo autorizar a reabertura da mina.
Também foram consultados órgãos oficiais, como a Agência Nacional de Mineração (ANM), o Serviço Geológico Brasileiro, ligado à Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (SGB/CPRM), e o Ministério das Relações Exteriores. Foram contatadas a Vale, a Colossus Minerals, a Coomigasp, a Sedeme e o Ibram. Por fim, foram acessados relatórios técnicos oficiais da Colossus enviados à Bolsa de Valores de Toronto em 2007 e 2010, além de artigos científicos que tratam da exploração de ouro em Serra Pelada e imagens de satélite da mina entre 1985 e 2021. A reportagem procurou, ainda, o Serviço Geológico dos Estados Unidos e o Conselho Mundial do Ouro.
Os autores dos vídeos postados no TikTok e no YouTube foram procurados, mas não responderam até a publicação desta checagem.
Mineração em Serra Pelada
O governo militar, então, mandou o Major Sebastião de Moura Curió, que havia dizimado alguns anos antes a Guerrilha do Araguaia, para “cuidar” do garimpo no local. O Major Curió loteou a mina e a distribuiu entre os garimpeiros. Durante uma década, estima-se que foram extraídos artesanalmente de Serra Pelada algo entre 37 e 50 toneladas de ouro, mas o volume pode ser maior por conta dos desvios. O ano com maior volume de extração foi 1983, quando saíram de lá mais de 13 toneladas de ouro, oficialmente, como mostra o artigo já citado e também esta reportagem do Estadão. Na época, havia 67 mil garimpeiros no local.
A partir de 1990, a retirada foi caindo consideravelmente e, em setembro de 1991, o então presidente Fernando Collor de Mello publicou um decreto determinando o dia 11 de fevereiro de 1992 como o prazo máximo para o fim dos trabalhos de garimpagem em Serra Pelada. O sonho de reabrir a mina continuou por muitos anos, até que, em 2007, o senador Edison Lobão começou as articulações para a reabertura.
O Estadão denunciou em 2010 como Lobão negociou a cessão das áreas da Vale para a cooperativa de garimpeiros e articulou também a formação de uma empresa entre a Coomigasp e a suposta gigante da mineração no Canadá Colossus Minerals. A entrada de uma mineradora era necessária à reabertura da mina porque o local onde antes era feito o garimpo havia se transformado em uma cratera de 200 metros de profundidade e estava cheia de água. Com a mina transformada em lagoa, era impossível aos garimpeiros minerarem de maneira artesanal.
Os trabalhos de pesquisa foram autorizados e a mineradora chegou a anunciar que havia encontrado depósitos de ouro em Serra Pelada, mas os documentos enviados à Bolsa de Valores de Toronto, também em 2010, mostram que a empresa não chegou a extrair nada – pelo contrário, foi informada a necessidade de mais dinheiro para, de fato, conseguir minerar em Serra Pelada.
O papel da Vale e da canadense Colossus
A Vale, também procurada pelo Comprova, confirmou não ter qualquer participação na Colossus e nunca ter chegado a exercer qualquer atividade de lavra minerária em Serra Pelada, seja para ouro ou diamante (identificado em quantidades irrelevantes). A mineradora afirma ter cedido a área de jazida à Coomigasp em março de 2007 e acrescenta manter no município de Curionópolis apenas a unidade Serra Leste, de exploração exclusiva de minério de ferro.
Em 2013, a Colossus, que desde então vinha realizando pesquisas no local e foi contratada pelos garimpeiros para explorar o ouro, realizou demissões em massa e comunicou a paralisação das atividades alegando ter encontrado desafios técnicos para o controle da quantidade de água no solo onde o projeto estava sendo desenvolvido, o que teria provocado um desequilíbrio orçamentário. As atividades nunca mais foram retomadas e o projeto acabou abandonado pela mineradora.
Atualmente, há uma briga judicial entre o Governo do Pará e a Serra Pelada Companhia de Desenvolvimento Mineral – formada pela Colossus e pela Coomigasp – em decorrência do abandono da área. Em março deste ano, a Vara Única de Curionópolis chegou a deferir parte de medida liminar na qual o estado afirma ter sido construída uma estrutura de contenção para receber rejeito de mineração, entretanto o projeto nunca entrou em operação.
A parte autora da ação sustenta que em vistoria técnica foi constatado que a barragem está “apresentando trincas e erosão significativas, recalques e galgamentos, não possuindo nenhuma instrumentação para monitoramento e drenagem superficial” e que a existência de uma comunidade próxima pode ser afetada pelo rompimento da estrutura.
O Comprova procurou duas vezes a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia (Sedeme) do Pará solicitando informações detalhadas sobre a atual situação da mina e andamento do processo, mas não recebeu retorno. A Colossus também não respondeu e a Coomigasp preferiu não se posicionar por telefone ou meio eletrônico.
Não houve retirada de minério no governo Lula
O Comprova consultou a ANM e questionou se houve extração e quanto de ouro foi retirado de Serra Pelada nos últimos 20 anos – desde 2003, o primeiro ano do governo Lula. Por e-mail, a agência informou que nada foi extraído nas últimas duas décadas. O Serviço Geológico Brasileiro também foi consultado, mas não respondeu até a publicação deste texto.
Um indício de que nada foi mesmo retirado são imagens de satélite do local do garimpo. A reportagem buscou imagens no Google Earth e encontrou registros de 1985 até 2021. O primeiro, de 1985, não possui boa resolução e, por isso, não é possível ver a situação da mina em pleno funcionamento. A próxima imagem disponível é de 2006, antes das articulações para a chegada da Colossus Minerals e 14 anos após o fechamento do garimpo.
Nas imagens a seguir é possível ver como a cratera (na parte inferior) permaneceu cheia durante todo o período que compreendeu os governos de Lula, Dilma Rousseff (PT), Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), até 2021. As únicas mudanças são a instalação da sede da Colossus e a abertura de uma barragem de rejeitos, que também acabou cheia de água (ela fica visível, já com água, a partir de 2016).
A maior fonte de ouro da história foi a bacia Witwatersrand, na África do Sul, responsável por algo entre 30% e 40% de todo o ouro já extraído no mundo. Na mesma região fica a mina mais profunda do planeta, a de Mponeng, com mais de 4,5 mil metros de profundidade. Mas é a China o país com a maior produção de ouro do mundo. Dados de 2020 do Conselho Mundial do Ouro estimam a produção chinesa em 368,3 toneladas do metal precioso por ano. O Brasil produz, em média, 107 toneladas anualmente.
Dinheiro para a Venezuela?
Acerca do trecho em que o homem do vídeo original fala sobre o ouro “comido” por Lula, a Vale e a empresa canadense, o narrador apresenta uma reportagem da Agência Brasil. Publicado em 2008, o texto informava, apenas, que 14 anos após ser fechado, o garimpo de Serra Pelada poderia ter a extração de ouro retomada após o Departamento Nacional de Pesquisas Minerais (DNPM) autorizar a empresa canadense Colossus Minerals a pesquisar quanto ouro ainda existia no local. O texto não afirma ter sido retirado minério do local.
Em seguida, o narrador apresenta outro trecho onde o homem diz que Lula enviou R$ 200 milhões para “Venezuela e não sei pra onde” e que o valor foi retirado de Serra Pelada. Sobre o assunto, o vídeo do YouTube mostra um texto do colunista José Benedito da Silva publicado pela revista Veja. O texto é de fevereiro de 2022 e trata de empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para países como Cuba e Venezuela, mas em nenhum momento é feita qualquer referência a Serra Pelada.
O dinheiro do BNDES na Venezuela e em outros países não é necessariamente um empréstimo ao país. Há alguns anos, o banco brasileiro fez financiamentos à exportação de bens e serviços de engenharia brasileiros no exterior. O dinheiro era entregue a empresas brasileiras e o pagamento do financiamento, com juros e em dólar, feito pelos países que haviam contratado os bens e serviços. Para a Venezuela, o parcelamento foi feito em 639 parcelas, das quais 598 já venceram sem pagamento e outras 41 estão para vencer. O país deve US$ 160 milhões ao Brasil, em dados atualizados pelo BNDES até março de 2022.
Roubo de R$ 11 bilhões e pesquisas eleitorais
Conforme apresentado em reportagem de outubro de 2021 da Folha de S. Paulo, uma série de fatores contribuiu para a Lava Jato perder força, incluindo uma sequência de decisões judiciais que a esvaziou, dentre elas, a anulação de processos contra Lula. O Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu, por 7 votos a 4, que o ex-juiz Moro foi parcial ao julgar o ex-presidente no processo do tríplex de Guarujá (SP), invalidando as provas colhidas no caso. Antes, o Supremo já havia decidido anular as condenações de Lula sentenciadas pela Justiça Federal de Curitiba.
Por fim, é utilizado o último trecho do vídeo do TikTok, em que o homem nas imagens afirma que Bolsonaro vencerá Lula nas eleições de 2022 com 30 milhões de votos a mais. O narrador diz, então, que a pessoa se equivocou apenas nesta “notícia”. Ele apresenta o print de uma suposta pesquisa definida por ele como “ao vivo, online, no Google”. O levantamento aponta mais de 3 milhões de votos, sendo 58,7% deles para Bolsonaro.
Em seguida, ele desqualifica as pesquisas oficiais, afirmando que elas ouvem pouco mais de 2 mil pessoas, e não levantam dados reais de que Bolsonaro vai vencer com mais de 60 milhões de votos no primeiro turno. O material utilizado pelo homem é uma enquete do site Eleições ao Vivo. Ele não explica que o próprio site alerta que enquetes não têm valor científico e omite que, neste site, uma mesma pessoa pode votar diversas vezes – basta informar um número de DDD.
O Comprova já demonstrou em verificação anterior que enquetes em redes sociais não têm valor científico e não substituem pesquisas eleitorais registradas nos tribunais eleitorais. Da mesma forma, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já explicou a diferença entre enquete e pesquisa eleitoral. No segundo modelo, que é legalizado, devem ser registradas informações relacionadas ao contratante da pesquisa; o valor e a origem dos recursos gastos; a metodologia e o período de sua realização; o questionário aplicado ou a ser aplicado; o nome do estatístico responsável; e a indicação do estado em que será realizado o levantamento.
Por que investigamos: O Comprova investiga conteúdos suspeitos que viralizam nas redes sociais sobre a pandemia de covid-19, políticas públicas do governo federal e eleições presidenciais. O conteúdo do vídeo aqui verificado cita dois pré-candidatos à presidência do país, Lula e Bolsonaro. Informações falsas que envolvem atores políticos trazem prejuízos ao processo democrático e atrapalham a decisão do eleitor, que deve ser tomada com base em informações verdadeiras. No vídeo postado no YouTube, por exemplo, há comentários afirmando que o homem que aparece nas imagens é “bem informado”, quando, na verdade, as alegações feitas por ele são falsas, enganosas ou estão fora de contexto.
Outras checagens sobre o tema: Anteriormente, o Comprova já verificou que uma linha de trem que liga a região de Serra Pelada, no Pará, ao Maranhão existe há 36 anos e não é obra do governo Bolsonaro e ser enganosa publicação que associa, sem evidências, ONGs da Amazônia à exploração de riquezas minerais.
Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor.