Cerca de 30 apoiadores do presidente Jair Bolsonaro provocaram interdição parcial da BR-493, em ItaboraíMarcos Porto / Agência O Dia
Bloqueios nas estradas: pacientes perdem cirurgias e tratamentos de câncer
As manifestações atrapalham ainda a entrega de medicamentos e insumos para hospitais, laboratórios e clínicas
Brasília - Os protestos antidemocráticos que impedem o tráfego em rodovias de todo o País já causam prejuízo para pacientes que precisam se deslocar para consultas, exames e tratamentos de alta complexidade, como cirurgias oncológicas, quimioterapia e hemodiálise. Há relatos de doentes que, por causa dos bloqueios, perderam atendimentos que demoraram meses para conseguir agendar.
As manifestações atrapalham ainda a entrega de medicamentos e insumos para hospitais, laboratórios e clínicas, que já observam queda nos estoques, além de dificultar a chegada de profissionais da saúde aos seus locais de trabalho.
No município de Taquara (RS), na Região Metropolitana de Porto Alegre, ao menos cinco pacientes com câncer perderam atendimentos por ficarem presos na estrada. "Uma paciente perdeu uma cirurgia ginecológica (oncológica), os outros pacientes perderam consultas. A maioria era primeira consulta, que são reguladas pelos municípios de origem e que os pacientes geralmente levam muitos meses para conseguir", contou Vitória Silva, que trabalha no setor de regulação de um hospital que atende SUS no município e é referência em oncologia para cidades da região.
"Essas consultas são super importantes para que eles possam iniciar o tratamento", disse ela ao jornal O Estado de S. Paulo.
Vitória conta que alguns médicos estenderam seus plantões até mais tarde para conseguir atender outros pacientes que se atrasaram horas por causa dos bloqueios.
Crianças com câncer perdem sessões de quimioterapia
Em Florianópolis, crianças com câncer perderam sessões de quimioterapia por ficarem presas nas estradas de Santa Catarina, um dos Estados mais afetados pelas manifestações antidemocráticas. Segundo relato feito pela oncologista pediátrica Amanda Ibagy nas redes sociais, as crianças não conseguiram chegar a tempo na segunda-feira, 31, e só puderam comparecer nesta terça, 1º, ao "provarem" para os manifestantes que tinham câncer.
"Hoje (terça-feira) elas conseguiram (chegar), mas tiveram que sair muito cedo, ficaram presas nos bloqueios. Só deixaram passar porque elas tinham uma cartinha nossa, dizendo que elas têm câncer. Uma inclusive teve que tirar a touquinha para mostrar que a criança era careca. Isso tudo é muito triste porque, além de ter que lidar com a dor dos procedimentos, ainda tem essa incerteza se vão chegar ou não para o tratamento da criança", disse a médica, em sua página no Instagram.
Ao jornal O Estado de S. Paulo, a médica contou que o paciente que mostrou a careca para conseguir autorização para passar no bloqueio é um menino de quatro anos que enfrenta uma leucemia. De acordo com a oncologista, a família mora em Lages, na Serra Catarinense, e saiu às 2 horas da madrugada de casa para conseguir chegar na manhã desta terça em Florianópolis. Foram seis horas na estrada em um trajeto que costuma demorar pouco mais de três horas.
"As mães entravam em contato com a gente desesperadas pedindo uma carta para provar que as crianças estavam indo para tratamento oncológico. Os pacientes que estavam em carros de secretarias da saúde até conseguiam passar, mas as que estavam com carro particular tinham dificuldade", relatou Amanda.
Uma das mães de paciente pediu que a equipe médica enviasse o documento detalhado para ela reconhecer a autenticidade em cartório para mostrar aos manifestantes e à Polícia Rodoviária Federal nos dias das próximas sessões de quimioterapia.
Ainda em Santa Catarina, a Prefeitura de Navegantes informou que profissionais da saúde não estavam conseguindo chegar aos postos de saúde. Ao menos três Unidades Básicas da Saúde (UBS) do município estavam sem médico na manhã desta terça.
Atraso em insumos para tratamento de leucemia
Em São Paulo, os pais de Clara, de 2 anos, que faz tratamento contra uma leucemia, sofrem com o atraso dos insumos para o medicamento quimioterápico que a menina precisa tomar todos os dias. O estoque que os pais tinham terminou nesta terça-feira e uma nova quantidade do medicamento foi solicitada pelo hospital que atende a criança na semana passada, com entrega prevista para segunda, 31, o que não se concretizou por causa das paralisações.
"A empresa transportadora disse que não tem previsão de quando vai conseguir entregar", conta a mãe de Clara, a enfermeira Marina Martins Ondei, de 36 anos.
Sem o remédio, a família conseguiu com outro hospital a doação de comprimidos para mais três dias e não sabe como dará continuidade ao tratamento caso o abastecimento não seja normalizado até a próxima sexta-feira. "Esses bloqueios insanos não vão prejudicar apenas minha filha, mas várias crianças que precisam chegar a outras cidades para fazer seus tratamentos. Isso é muito grave", disse ela.
O Hospital de Amor (antigo Hospital do Câncer de Barretos), no interior de São Paulo, informou que as paralisações já afetam o setor de suprimentos da unidade, que "deixou de receber mantimentos alimentícios, exigindo uma readequação no cardápio, mas não ocasionando danos aos pacientes, acompanhantes e colaboradores".
De acordo com o hospital, pacientes tiveram dificuldades para retornarem para suas cidades de origem, pois o transporte precisou ser remarcado devido aos bloqueios.
Pacientes em tratamento renal também estão sendo prejudicados. De acordo com a Associação Brasileira de Centros de Diálise e Transplante (ABCDT), "estoques de insumos e medicamentos para o tratamento de doentes renais já começam a ficar em estágio crítico e pacientes relatam dificuldade em chegar às clínicas em algumas cidades". A entidade destaca que cerca de 150 mil brasileiros dependem da diálise realizada três vezes por semana para sobreviver.
A Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed) também manifestou preocupação diante dos bloqueios. De acordo com a entidade, "laboratórios de medicina diagnóstica de todas as regiões brasileiras já registram dificuldades em relação ao transporte e abastecimento de insumos, como reagentes e contrastes, e até mesmo de amostras coletadas dos pacientes para processamento de exames".
No Pará, população ribeirinha perde cirurgias
No Estado do Pará, pacientes com cirurgias agendadas em um hospital do município de Belterra não compareceram por causa dos bloqueios. Graças a uma iniciativa da ONG Zoé, a unidade de saúde abriu uma agenda excepcional de cirurgias, exames e consultas nesta semana para atender a população ribeirinha de povoados do entorno. A expedição organizada pela ONG reuniu 30 profissionais da saúde, entre eles mais de 20 médicos, para atender a população gratuitamente.
"Estamos fazendo cirurgia laparoscópica e aberta, colonoscopia, endoscopia, ultrassom, clínica médica e dermatologia. Mas eles (manifestantes) fecharam a BR, então há uma dificuldade de locomoção e essas pessoas acabaram prejudicadas e não conseguiram chegar ao hospital. Algumas especialidades estão tendo uma ociosidade até. O que a gente traz é algo que eles não têm no dia a dia, então isso (bloqueios) gera um prejuízo para a população. É uma pena", disse Marcelo Averbach, cirurgião, colonoscopista e cofundador da ONG Zoé.
"Em termos do direito de ir e vir, não podemos deixar que a saúde, que é um direito universal, seja prejudicado", afirmou o endoscopista Marco Aurélio D'Assunção, também fundador da ONG e outro médico que integra a expedição.
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