Lula vetou eventos alusivos aos 60 anos do golpe militar e tenta reaproximação com militaresRicardo Stuckert/PR
Governo Lula silencia sobre os 60 anos do golpe militar
Estratégia do presidente de evitar atrito com as Forças Armadas recebe críticas e aponta manutenção da influência da caserna na política nacional
Este domingo, 31, marca os 60 anos do golpe militar que depôs o presidente João Goulart e instaurou uma ditadura que durou até 1985. Os efeitos do período de autoritarismo se mantêm até os dias de hoje na sociedade brasileira. Livros, artigos acadêmicos, ciclos de debates e manifestações da sociedade civil resgatam um dos momentos mais difíceis da política nacional. Mesmo seis décadas depois, os eventos daquela noite de março de 1964 ainda influenciam os rumos do País.
A campanha eleitoral de 2022, a vitória de Lula na disputa presidencial e os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 tiveram como um diáfano pano de fundo a ditadura. De um lado, os setores progressistas da sociedade temiam uma eventual ruptura democrática; de outro, a extrema-direita brasileira pedia abertamente a intervenção militar. O fantasma do golpe se materializou em risco real durante os últimos meses do governo Bolsonaro, que sempre defendeu a ditadura militar e teceu reiterados elogios aos chamados “anos de chumbo”.
Mesmo com o fracasso da tentativa de golpe do 8 de Janeiro e a reafirmação das instituições democráticas brasileiras, o golpe militar de 1964 ainda é um tabu — ao menos no atual governo. No início de março, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva orientou que nenhuma esfera do Executivo promoverá eventos alusivos à data. A decisão, vista como “ordem expressa” do Planalto, gerou desconforto em alguns setores do governo.
O Ministério dos Direitos Humanos já havia anunciado uma série de eventos, cujo mote era “sem memória não há futuro”. O titular da Pasta, Sílvio Almeida, foi chamado no início do mês para uma reunião com Lula. Na ocasião, o presidente determinou o cancelamento de toda e qualquer atividade que fizesse menção ao golpe militar.
No ano passado, ainda na esteira dos atos golpistas de 8 de janeiro, o então ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciou a criação do Museu da Memória e da Verdade, que teria a função de resgatar a resistência contra a ditadura militar e denunciar ataques à democracia. A obra seria custeada com recursos da Pasta e a inauguração estava prevista para este domingo, 31. Contudo, o projeto jamais saiu do papel. Fontes próximas ao Palácio do Planalto afirmam que Lula ficou irritado com a proposta, que não teria sido submetida ao seu crivo antes do anúncio por Dino.
Outra questão sensível se refere à Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos. Extinta no governo Bolsonaro, sua recriação é pleiteada por defensores dos direitos humanos. O decreto que restabelece o funcionamento da comissão está há quase um ano sobre a mesa de Lula aguardando a assinatura. O presidente não dá sinais de que pretenda validá-lo.
Polarização política
A estratégia de Lula de manter os 60 anos do golpe fora da agenda oficial do governo faz parte dos esforços do petista para reduzir a polarização política no País. Nesse contexto, a determinação do cancelamento de eventos alusivos à data representa um aceno aos militares, cuja imagem ficou abalada após o 8 de Janeiro. Por outro lado, o ministro da Defesa, José Múcio, já avisou ao presidente que os comandantes de Exército, Marinho e Aeronáutica avisaram que não se manifestarão neste domingo, selando um acordo tácito.
Para o historiador e pesquisador do Núcleo de Memória Paulo César Novelli, Lula coloca “panos quentes” ao evitar que o governo se pronuncie oficialmente sobre o golpe. Ele cita a recente entrevista do presidente ao jornalista Kennedy Alencar. Na ocasião, o petista fez o seguinte comentário sobre a ditadura: “(...) não vou ficar remoendo e vou tentar tocar esse país para frente”. Novelli classifica a fala de Lula como “infeliz” e “desastrosa”, pois inibe o debate sobre a ditadura e o papel dos militares na sociedade brasileira.
O tom apaziguador de Lula representa mais um passo na tentativa de “desbolsonarização” das Forças Armadas. Alçados à condição de protagonistas em importantes setores do governo anterior, os militares voltaram a ser aclamados como “salvadores da pátria” pelos defensores de Jayr Bolsonaro. A tentativa de golpe do 8 de Janeiro revelou, se não o apoio, a complacência de parte do alto escalão de Exército, Marinha e Aeronáutica. É justamente contra esse setor que Lula move as peças do xadrez político. Evitar atritos com a caserna faz parte da estratégia do petista.
Força da caserna
O golpe de 1964, ainda que contando com apoio de civis, só ocorreu devido ao poder — político e das armas — dos comandantes militares. Tal característica nunca desapareceu, segundo Carlos Fico, professor do curso de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de livros sobre a ditadura.
“A fragilidade institucional da democracia brasileira decorre da persistência do fenômeno do intervencionismo militar. Desde a Proclamação da República, em 1889, os militares se veem como substituto do Poder Moderador do Império. Tivemos, ao longo da história republicana, muitos exemplos desse intervencionismo militar. A ditadura militar foi o pior deles. Desde o seu fim, não tivemos condições políticas de enfrentar esse problema, enfrentamento que passaria, por exemplo, pela reescritura do artigo 142 da Constituição, que dá atribuições excessivas às Forças Armadas”, destaca.
O jornalista e escritor Cid Benjamin, que participou da resistência armada à ditadura e foi exilado, aponta o temor que o poder das Forças Armadas desperta na classe política como uma questão que precisa ser enfrentada. Para ele, os dois governos de Lula falharam ao não colocar o tema na pauta política. O atual, segundo o jornalista, segue na mesma direção.
“Desperta [temor entre os políticos], mas não deveria despertar. Houve muitos momentos em que os militares não teriam condições políticas para dar um golpe. Quando Lula assumiu seu primeiro mandato o enfrentamento dessa questão era algo esperado por todos. Houve outros momentos assim. Estamos vivendo o mais recente deles, depois da fracassada tentativa de golpe de 8 de janeiro”, lembra Benjamin. O jornalista destaca ainda que “(...) o debate sobre o papel das Forças Armadas em um regime democrático não foi feito. Precisa ser. E dele, é necessário que se tirem conclusões”.
Poder fardado
A Lei da Anistia foi um fator preponderante para a manutenção da influência política dos militares após o fim da ditadura. Tanto Fico quanto Benjamin destacam a diferença do tratamento dispensado aos membros das Forças Armadas no Brasil em relação ao que ocorreu em outros países da América do Sul que passaram por regimes autoritários no mesmo período e que colocaram chefes militares na cadeia.
Benjamin lembra o contexto em que foi aprovada a Lei da Anistia, em um processo encaminhado pelos próprios militares. Para o jornalista, a interpretação jurídica dada à época permitiu distorções graves.
“Quando foi aprovada, a Lei da Anistia se deu nos limites demarcados pelos militares. A oposição fez bem em votar a favor dela. Naquele momento, era aquilo ou nada. Mas depois a questão deveria ter sido reaberta. E isso era possível se houvesse coragem política. O artifício de anistiar ‘crimes conexos’ para livrar os torturadores é grotesco. Considerar que a tortura ou o estupro de uma presa por motivos políticos seria um crime conexo aos supostos crimes praticados por ela é escandaloso”, afirma Benjamin.
O jornalista acredita que a anistia aos crimes de tortura, desaparecimento e morte de opositores da ditadura contribuiu para que os militares se mantivessem impunes e influentes no cenário político.
Já o professor Carlos Fico aponta para o “caráter inconcluso” da transição democrática brasileira. Segundo o pesquisador, a falta de punição aos militares envolvidos em crimes contra opositores ajuda a explicar “a ausência de enfrentamento do passado”.
“É muito difícil saber o que poderia ter acontecido [se os militares tivessem sido punidos]; a gente não costuma fazer história contrafactual, mas é claro que a ausência de enfrentamento do passado gera consequências, de modo que a não punição dos responsáveis por crimes de violação dos direitos humanos, militares ou civis, deu à transição brasileira um caráter inconcluso. Houve algumas tentativas de se mudar a interpretação da Lei de Anistia de 1979, mas fracassaram. Hoje, uma iniciativa desse tipo teria dimensão quase que apenas simbólica porque a maior parte dos envolvidos já morreu”, avalia.
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