“Quem faz um poema abre uma janela. Respira, tu que estás numa cela abafada, esse ar que entra por ela. Por isso é que os poemas têm ritmo - para que possas profundamente respirar. Quem faz um poema salva um afogado.”
Mário Quintana
Todo final de ano, nós nos comprometemos, de alguma maneira, a nos dedicarmos, no ano que se avizinha, aos propósitos mais leves, mais humanistas e mais solidários. Em praticamente todas as áreas, há um interesse genuíno de fazer parte de um mundo melhor. Dentre os raros leitores que ainda tenho, com frequência, ouço ou leio observações carinhosas no sentido de que os meus artigos, debates, palestras e entrevistas deveriam ser mais leves, sem falar tanto do fascismo bolsonarista e dos indigentes intelectuais lavajatistas.
O que esses desavisados leitores talvez não saibam é que minha aldeia é povoada de pesadelos. Existe, dentro de mim, uma vontade enorme de poder falar sobre um sentimento do mundo que abrace a todos com otimismo e nos acalente. Esse é um sonho que se defronta, diuturnamente, com frações de realidade que teimam em me alertar que a hora ainda é de embate, de resistência e de alerta. O meu instinto de sobrevivência ainda não me permite priorizar meus devaneios poéticos e minha alma libertária.
Recentemente, uma ilustrada figura - com fardão acadêmico e tudo, conhecida viúva da Lava Jato -, usando um espaço nobre da mídia tradicional, ousou estabelecer uma falsa, e quase hipócrita, simetria entre a nomeação do então juiz Sérgio Moro ao ministério da Justiça pelo presidente Bolsonaro, que ele ajudara a eleger prendendo ilegal e covardemente o principal opositor do então candidato, a uma possível escolha do ex-ministro Lewandowski ao mesmo cargo no governo Lula. A desfaçatez não tem limites. A comparação só serve para demonstrar que as viúvas lavajatistas estão ouriçadas no projeto de volta ao obscurantismo. E vivas.
Ao assumir o ministério de Bolsonaro, o ex-magistrado recebeu a recompensa pelos serviços prestados e deveria ter respondido criminalmente por isso. Ninguém de boa-fé pode fazer qualquer paralelismo com uma hipotética nomeação do ex-ministro Lewandowski. Mas é um alerta no sentido de ficarmos vigilantes.
Por outro lado, foi constrangedora a postura do professor Mangabeira Unger na entrevista com o ministro Luís Roberto Barroso. Ao criticar as decisões da Corte Suprema de tornar parcial e incompetente o juiz Sérgio Moro, o professor, com sua proverbial arrogância, chegou a imputar crimes aos ministros do Supremo. Defendeu que o “ativismo judicial” nesses julgamentos se utilizou de “mecanismos oblíquos” e que a Corte “usou truque processual” e “ideias de solução caprichosa e viciada”. Raro ver tanta desfaçatez. Para o estranho e bizarro docente, todo o arcabouço constitucional da ampla defesa, do devido processo legal, do direito ao juiz natural e da presunção de inocência é apenas “um detalhe”. E ele tem a ousadia de falar isso para um ministro do Supremo que, elegantemente, soube responder sem baixar o nível.
É necessário que tenhamos a exata dimensão de que foi a Lava Jato que chocou o ovo da serpente do bolsonarismo. Eles se misturam e se alimentam. Houve uma aparente separação numa briga de poder. Mas o bolsonarismo segue firme dividindo o país pelo ódio e pelo sectarismo.
Enquanto o Brasil não enfrentar com serenidade, mas firmeza, os inúmeros crimes cometidos pela República de Curitiba naquela operação, bem como os perpetrados em série na pandemia, na destruição da estrutura democrática do país, na tentativa de romper com o Estado democrático de direito e tantos outros, pelos grupos lavajatistas, não poderemos nos dar ao luxo de escrever sem esse viés que respeita o contraditório e a democracia, mas que usa um tom acima do que se espera em tempos de paz.
Creiam-me, esse tempo de paz insiste em não chegar. Vamos continuar nossa resistência, ainda que, às vezes, pareça áspera, mas sem perder o humor. Na linha da frase não dita, mas atribuída a Che Guevara: “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”.
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