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Meu velho pai, a pessoa que mais amei na vida, tinha uma foto que não lhe fazia bem. Era uma fotografia antiga em que aparecia ele, seus 6 irmãos homens, vários primos e amigos. Fantasiados num carnaval. Todos muito bonitos, fortes e com sinais exteriores de alegria, espertezas e que tais. Era uma imagem que o remetia a uma fase muito especial, na qual a felicidade era um componente natural. A amizade emoldurava um tempo de muita satisfação. E ninguém precisava conter nada, a exuberância era fruto daquela juventude que saía pelos poros.
Sentado numa cadeira de balanço, ele segurava, de maneira indolente, a fotografia no seu colo coberto por uma manta. Já entrado em anos, muitos anos, a cena eternizada pela foto se mostrava muito longe. Irreal. Se era bom reviver o passado com sua presença sempre presente, por outro lado, certa dor exalava de ausências incontidas. Aquela imagem perpetuada pela foto, naqueles dias e noites sentado na cadeira de balanço vermelha, mais servia para trazer uma imorredoura saudade do que propriamente para dar prazer de uma lembrança boa e terna.
Todos que apareciam naquele retrato já tinham partido para um lugar insondável. Restava meu velho pai, já cansado e que olhava docemente para os amigos jovens e fortes e, especialmente, para um tempo que, de certa forma, convidava-o para entrar na foto e viajar numa dimensão sem os nossos limites da realidade. Por várias vezes, eu aproveitava um lapso e escondia a foto. Queria que ele optasse por um certo contato com o real. Falava da vida. Todavia, depois, eu trazia de novo a fotografia, afinal não queria brincar de Deus tentando dar um sentido real ou imaginário ao tempo.
Hoje, já sem o meu amado pai, sento-me, às vezes, e me remeto a uma época na qual éramos mais felizes e as diferenças eram respeitadas como naturais. Ainda que sentindo tristeza e opressão pelas desigualdades sociais. Nossas divergências não cabiam nos limites estreitos de uma fotografia. Porém, no nosso inconsciente, estava indelevelmente gravada uma relação que passava por um olhar fraterno entre as pessoas. Muitas vezes um estranhamento normal, pelas diferenças de olhar o mundo, mas sem ódio e sem vontade de extermínio. O que nos desunia não era um desejo de dominação do outro com objetivo de aniquilamento. Até ao contrário, as divergências eram saudáveis e instigantes.
Lembro-me da fotografia que acompanhava meu pai e que o entristecia de tanta saudade dos amigos que se foram. De certa forma, também olho para um retrato imaginário, em que cada pessoa que não mais existe corresponde, de alguma forma, a uma mudança no sentimento de mundo que fragmentou a realidade.
O ódio, a barbárie, a mentira, a falsidade e outros comportamentos da extrema direita incivilizada apagaram a fotografia de um tempo que precisa voltar. E é na esperança e na crença desse retorno que eu me inspiro para sentar numa cadeira de balanço invisível e, sem medo da obtusidade vulgar, liberar meus sonhos rumo à tentativa de fazer dos nossos fossos pontes para um país mais fraterno, mais justo e igual.
Como nos ensinou Drummond, em seu poema Confidência do Itabirano: “Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!”.