kakay23maronlineARTE KIKO

“Pergunte ao Criador
Quem pintou esta aquarela
Livre do açoite da senzala
Preso na miséria da favela.”
Samba que levantou a Avenida em 1988 com o enredo: “Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão?”, Estação Primeira de Mangueira.

Acompanho os desfiles na Avenida no Rio desde 1979. E saio nos blocos que encantam o carnaval espalhados pela cidade. Ano passado, o Simpatia é Quase Amor, bloco que adoro, parou na frente da minha janela e o animador fez uma homenagem a mim pedindo às pessoas para se manifestarem, pois “ali está um resistente e uma pessoa que enfrenta o fascismo”. Emocionei-me com os foliões gritando meu nome.

Neste ano, fui a uma roda de samba no centro do Rio, em frente ao Tribunal Marítimo, e o puxador gritou, com o bom humor carioca: “oh Kakay, manda uma carta para mim como a que você escreveu para o Lula!”. Foi uma zoada geral. Bem ao estilo dos blocos de rua que valorizam o carnaval alegre e meio moleque.

Um dos maiores samba-enredo que acompanhei foi o “Kizomba, Festa da Raça: Valeu Zumbi, o grito forte de Palmares”. O sambódromo se emocionou. As pessoas cantando e muitas chorando. Eu inclusive. Foi lindo. E isso foi em 1988, com a Vila Isabel. E tantos outros sambas que faziam a Avenida cantar a todo pulmão, com alegria e leveza. Os desfiles acabavam de manhã cedo e nós seguíamos para os bares continuando a entoar as músicas preferidas.

Já fui muito em arquibancadas, já desfilei algumas vezes e gosto de camarotes não badalados, onde as pessoas vão para ver o desfile - normalmente um espaço para 200 lugares em que só 100 são convidados para realmente acompanhar a escola, o samba e a evolução.

Agora, eu estava em um camarote muito legal e notei que ninguém sabia os sambas mais interessantes. Não cantavam. Um túmulo. Postei no WhatsApp, já que não tenho nenhuma outra rede social, que a Tuiuti tinha me emocionado e merecia ganhar e coloquei um trecho do samba-enredo da escola:

“Só não venha me julgar, ô ô
Pela boca que eu beijo
Vim da África Mãe, ê-ô
(Eu sou) a bicha, invertida e vulgar
A voz que calou o cis tema”

Foi lindo e muito tocante! Na mesma mensagem, fiz uma breve reclamação sobre alguns samba-enredos com letras gigantes e incompreensíveis. Ressalvando que são importantes as críticas sociais e que a Sapucaí é, cada vez mais, felizmente, um espaço político. E ressaltei que, em época de fascismo, é preciso sambar e cantar no carnaval, afinal “sonhar não custa nada”, como já dizia o samba-enredo de 1992 da escola Mocidade Independente de Padre Miguel.

Impressionante a visão de algumas pessoas sobre a minha manifestação a respeito do fato das letras não conseguirem fazer os foliões acompanharem o samba. Versões agressivas rolaram em jornais e, falaram-me, pois não acompanho, em redes sociais. Como se eu estivesse de alguma maneira desdenhando da história, que tem que ser contada e apreendida, da África e dos negros. Claro que, felizmente, recebi dezenas de manifestações carinhosas de quem segue minha vida e minha advocacia. Sou dedicado à causa antirracista e tenho, no meu escritório, em regra, 40% de causas pro-bono para defender ideias e movimentos dos excluídos. Ainda nesta semana, ganhamos uma revisão criminal, dificílima, e absolvemos a Zezé, coordenadora regional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). Mas me impressionou a virulência de pessoas que atravessaram o samba com uma hostilidade destemperada.

É difícil o momento brasileiro. Na verdade, o mundial. O fascismo fez uma névoa de ódio na sociedade. Não há espaço para discussão de ideias. Não há possibilidade de desavenças entre os que deveriam ter, no mínimo, um sentimento do mundo que aproximasse em momentos de crítica, ainda que pontuais e, muitas vezes, sem sequer ter divergência de fundo. A resposta é o ataque virulento e o rompimento de pontes.

É nesse ambiente que o fascismo cresce e floresce: jogando na vala comum as ideias que deveriam servir para aprofundar e discutir pretensas discordâncias que, no fundo, nem mesmo são discordâncias. Mas o espaço para o diálogo deixou de existir. E nós vamos acompanhando um diálogo sem ouvir o outro, sem conseguir cantar os sambas e sem conseguir conversar sem agressividade. É aí que a extrema direita cresce. E nós vamos perdendo o ritmo e atravessando o samba. Sem humildade para conversar.

Lembro-me de uma frase que li certa vez: “O orgulho é uma cerca de arame farpado, que fere quem está de ambos os lados”. Por isso, eu grito alto a letra do samba composto em 1975 por Edson Conceição e Aloísio Silva e eternizado pela voz da musa Alcione:

“Não deixe o samba morrer
Não deixe o samba acabar
O morro foi feito de samba
De samba pra gente sambar.”

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay