João Gilberto tocando ao amanhecer durante o Festival de Águas Claras em 1983: imagem rara  - Calil Neto/DIVULGAÇÃO
João Gilberto tocando ao amanhecer durante o Festival de Águas Claras em 1983: imagem rara Calil Neto/DIVULGAÇÃO
Por RICARDO SCHOTT

Rio - Há dez anos, o cineasta Thiago Mattar foi avisado pelo pai que tinha havido um Festival de Woodstock brasileiro. E que o evento havia acontecido em quatro edições (1975, 1981, 1983 e 1984) numa fazenda localizada numa pequena cidade do interior paulista, Iacanga, com um time de convidados que incluiu do ex-mutante Arnaldo Baptista a João Gilberto e Raul Seixas. "Quando ele me falou, disse: 'Ah, é piada, né?", conta Thiago, que acaba de reportar a história do Woodstock verde-e-amarelo, o Festival de Águas Claras, no documentário 'O Barato de Iacanga'. O filme ganha exibição no Rio no festival 'É Tudo Verdade' neste sábado (20h, no Instituto Moreira Salles) e domingo (18h, no Estação Net Botafogo).

O evento teve proporções enormes, durou três dias em todas as quatro edições e, nos anos 1980, ganhou transmissão até pela Band - em cujos arquivos Thiago foi pesquisar. Ainda assim, o diretor penou até encontrar mais informações. Seu pai, criado em Iacanga, tinha parentesco com o idealizador do festival, Antonio Cecchin Jr, o Leivinha, o que ajudou. "Leivinha me disse: 'Você tem 20 anos, eu tinha 22 anos quando fiz o festival e ninguém acreditava em mim, nem que fosse dar certo'. Ele contou a história de um jeito incrível e me entregou material de bastidores", recorda. "Fui pegando minha câmera e gravando as primeiras entrevistas, e amigos foram me ajudando. Muitos falavam: 'Por que a gente nunca ouviu falar disso? Nossa geração conhece só o Rock In Rio!'"

O festival, que parou de ser realizado um ano antes do Rock In Rio, acabou sendo o último suspiro do sonho hippie na cultura pop nacional. Trechos do filme, com pessoas tomando banho nuas no rio, e rolando na grama, comprovam isso. "Tive que ir atrás até de pessoas do público para liberar imagem. Imagina: você só viu o cara pelado e tem que descobrir quem é", brinca. Nas buscas por imagens, descobriu que muitos canais haviam apagado gravações. "Com o tempo, a gente esquece das coisas. Memória no Brasil não é nosso forte mesmo", lamenta.

O primeiro festival, de 1975, foi montado como um evento de rock, com bandas como Mutantes, Terreno Baldio e Som Nosso de Cada Dia. Depois, cada vez mais visado pelo governo militar (Thiago diz que há documentos comprovando que a censura perseguiu o festival ate 1984), Leivinha decidiu que Águas Claras seria um festival de MPB, com nomes como Luiz Melodia, A Cor do Som, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal.

No filme, há cenas como Luiz Gonzaga falando "essa aqui é a Sociedade Alternativa? Raul Seixas tinha razão", Hermeto Pascoal eletrizando o público com um gigantesco solo de flauta e as imagens raríssimas do show de João Gilberto. Uma liberação que deu muitas dores de cabeça para Thiago, que veio ao Rio e praticamente acampou na porta do prédio do violonista, no Leblon, para encontrá-lo, mas não o viu. "Depois a Bebel Gilberto (filha) conseguiu a curatela da obra dele e me deu autorização", alivia-se.

A nova geração do rock brasileiro não chegou a estar presente no evento. "Depois do último festival, houve uma atitude coletiva de esquecimento, uma nova juventude, uma nova maneira de fazer festivais", conta Thiago. Após o sucesso da edição de 1983, com João Gilberto, o festival de Águas Claras de 1984 já seguiu um modelo diferente, com patrocínio de cervejarias e realização durante o Carnaval. "Costumo dizer que a natureza se vingou e não deixou que acontecesse", explica.

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