Taxas de juros elevadas dificultam o financiamento do carro zero kmHonda/Divulgação

Com a chegada do fim do ano, o pagamento do 13º salário e os lançamentos da indústria automobilística, o consumidor se vê estimulado a trocar o carro antigo por um modelo zero km ou um seminovo. No entanto, o sonho pode se transformar em pesadelo. As altas taxas de juros e as condições impostas por bancos e instituições financeiras, aliadas à instabilidade econômica, representam um grave risco para o orçamento das famílias.
Com o fim da produção do modelo Gol, a indústria automobilística eliminou o nicho dos carros populares. Hoje, o automóvel zero km mais barato — o Fiat Mobi Like 1.0 — custa em torno de R$ 66 mil. Já os seminovos vivem um momento de valorização. A Tabela Fipe, que é utilizada como parâmetro para o preço dos veículos usados e cálculo do IPVA, registrou alta expressiva nos últimos meses.
O cenário se torna ainda mais sombrio quando o consumidor analisa os juros. A taxa Selic, que serve como termômetro para os juros praticados pelos bancos e financeiras, deve fechar 2022 na casa dos 13,75% ao ano. Quem compra um carro financiado hoje precisa dar entrada de 40% a 50% do valor. 
Mau negócio
Para o advogado especialista em contratos de financiamento de veículos Thacício Rio, o momento não é propício para quem deseja comprar um carro, seja ele zero km ou seminovo. Ele explica que o mercado ainda não encontrou um ponto de equilíbrio, afetado pela falta de informações acerca da política econômica que será adotada a partir de janeiro.
“Se a pessoa tem algum recurso guardado para a aquisição de um carro, a minha sugestão é manter o dinheiro aplicado e só voltar a pensar nisso em 2023, depois do Carnaval. No caso dos seminovos, o momento só é bom para quem está vendendo, pois há uma valorização acentuada — para não dizer exagerada — da tabela Fipe. Se falarmos em modelos novos, as taxas de juros cobradas pelos bancos encarecem muito o valor final do carro”, alerta Rio.
O especialista destaca ainda que um financiamento de longo prazo sempre traz risco para o orçamento familiar. Rio acredita que falta à maioria das pessoas um planejamento para aquisição de bens de maior valor, com as compras acontecendo por impulso. Ele cita como exemplo o recebimento do 13º salário como um elemento que estimula o consumidor a contrair uma dívida muitas vezes impagável.
“A pessoa tem um dinheiro guardado, recebe o 13º e se empolga. Junta tudo e vai comprar um carro financiado. Ela não analisa detalhadamente qual será o impacto daquela parcela no orçamento doméstico. Também não pensa nos gastos com IPVA, seguro, documentação e despesas diárias para uso do carro. No fim, ela gasta as economias e assume uma dívida que não será paga. O resultado é desastroso: ela perde o dinheiro poupado e ainda tem o carro tomado pelo banco ou financeira. Esse tipo de situação é mais comum do que se imagina”, adverte Rio.
Sonho de consumo
O representante comercial Ricardo Dantas Pozzo, de 39 anos, economizou durante dois anos para comprar um carro zero km. O valor acumulado no período não foi suficiente para pagar a entrada do financiamento. A solução encontrada foi dar o seu antigo automóvel, em uma negociação casada. A concessionária ficou com o veículo antigo e recebeu o resto da entrada em dinheiro.
Pozzo pagou pela SUV Honda CRV modelo 2023 cerca de R$ 300 mil, sendo que metade do valor foi dado como entrada. Ele financiou o veículo em 36 meses. Sem revelar quanto custará cada parcela, ele acredita que conseguirá inserir a nova despesa no orçamento familiar sem dificuldade.
“Sei que não é um carro barato, mas é a realização do meu sonho. Sempre quis ter uma SUV zerada. Conversei com a minha mulher, que não gostou muito da ideia. No fim, ela aceitou. Quem não é rico só conquista as coisas assim: se endividando. Vou cortar alguns gastos, como viagens, comer fora, eliminar supérfluos. Acho que vai dar para pagar sem problema. Vai ser um pouco apertado no começo, mas depois a parcela entra folgada no orçamento”, conta Pozzo, feliz com o novo carro na garagem e uma dívida de três anos para pagar.
Rio considera temerária a decisão do representante comercial. O especialista alerta para o risco embutido no financiamento assumido por Pozzo:
“Ele se desfez do carro antigo, que foi subavaliado na hora do negócio. Ou seja, já começou perdendo dinheiro. A concessionária nunca vai pagar o valor real do carro que o consumidor oferece como parte da entrada. Além disso, investiu todo o dinheiro guardado. O ideal seria aguardar mais um pouco, aumentar a reserva financeira e comprar o bem à vista ou financiando apenas uma pequena parte. Caso haja algum problema e ele não tenha como quitar as parcelas, perderá o veículo adquirido e o valor em dinheiro dado na entrada. Este é um negócio muito arriscado. Eu não faria isso”, diz.
A servidora federal aposentada Dilma Silva, de 68 anos, optou pelo caminho inverso ao trilhado por Pozo. Ela resistiu ao impulso de trocar de carro, apesar das várias ofertas de financiamento que recebeu do banco no qual mantém conta. Dilma escolheu por não fazer negócio neste fim de ano e aguardar o mercado se estabilizar.
“O meu carro é modelo 2018 e me atende muito bem. Não tenho necessidade de trocar agora. Claro que gostaria de comprar um carro novo, mas não vou fazer nenhuma loucura. Tenho um dinheiro aplicado. Quando essa aplicação for suficiente para eu comprar um carro novo à vista, aí vou na concessionária. Não quero ficar na mão de banco, pagando uma fortuna de juros. É melhor ver como vai ficar essa taxa de juros no ano que vem. Não tenho pressa, posso esperar”, diz a aposentada.
No site calcule.net especializado em simulações de financiamentos de veículos, é possível projetar o valor da prestação mensal para a compra de um automóvel zero km. Um carro vendido a R$ 90 mil, com entrada de R$ 45 mil, sairá por 36 parcelas de R$ 1.606,03. Ao fim do período o consumidor terá pagado R$ 15.337,16 só de juros. A simulação leva em consideração a média das 30 menores taxas cobradas pelas instituições financeiras.
Retomada de veículos dispara
Rio lembra que, nos últimos anos, os bancos intensificaram as ações judiciais de busca e apreensão por atraso de pagamento do financiamento de veículos. Antes da pandemia, o número de pedidos de devolução dos veículos era entre 10% e 15%. Antes de pedir à Justiça a busca e apreensão do veículo, as instituições financeiras buscavam acordos, propondo o refinanciamento da dívida. O especialista explica que essa realidade mudou.
“Hoje, entre 35% e 40% dos veículos financiados estão com parcelas em atraso. Os bancos não querem mais refinanciar o débito, pois o risco de inadimplência se mantém elevado. Para o ele, é mais interessante tomar o bem e colocá-lo em leilão”, diz.
O advogado atribui essa mudança à maior rapidez na tramitação das ações judiciais e à crise econômica. Segundo Rio, “a falta de perspectiva de melhoria do cenário no curto e médio prazo coloca os bancos na defensiva”. Ele não crê que a situação se altere nos próximos meses.