Em 2023, cerca de 8,3 milhões de pessoas atuavam em home office, segundo dados divulgados pelo IBGEMatthew Henry / Burst

A demissão de aproximadamente mil funcionários no Itaú, sob alegação de baixa produtividade e condutas inadequadas no trabalho remoto, expôs a instabilidade e a falta de respaldo jurídico enfrentada por trabalhadores nesse modelo. Em 2023, cerca de 8,3 milhões de pessoas atuavam em home office, segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar do número expressivo, a escassez de jurisprudências e a ausência de fiscalização deixam muitos profissionais inseguros sobre seus direitos.
No Brasil, o trabalho remoto é regulamentado pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) introduzidas em 2017, na reforma trabalhista. O DIA conversou com a advogada Cyntia Sussekind Rocha e ela explicou que a legislação garante a esses empregados os mesmos direitos e deveres dos que atuam presencialmente, prevendo que casos específicos sejam acordados no contrato de trabalho.
"A reforma trabalhista trouxe maior independência em relação ao contrato. As partes devem definir quem irá realizar o custeio das despesas e equipamentos. Ressalvando a Legislação, caso o empregador forneça algum valor extra, esse não integra a remuneração do empregado, tendo caráter meramente indenizatório, de reembolso", afirma Cyntia. 
Cyntia explica que, normalmente, a vigilância ocorre em plataformas específicas das empresas - Arquivo Pessoal
Cyntia explica que, normalmente, a vigilância ocorre em plataformas específicas das empresasArquivo Pessoal
De acordo com levantamento da Glassdoor, plataforma internacional que reúne avaliações de empresas e informações sobre o ambiente de trabalho, o uso de ferramentas de supervisão remota cresceu 216% nos últimos quatro anos. O aumento levanta debates sobre ética, privacidade e o impacto moral dos funcionários, que ficam estressados, ansiosos e com a sensação de estarem constantemente sob vigilância. 
A especialista relata que, normalmente, a vigilância ocorre em plataformas específicas das empresas, sendo assim, um monitoramento restrito: "Dessa maneira, não invade a privacidade de seus empregados. De toda forma, pode ser realizado um sistema de 'controle de jornada' diverso, como, por exemplo, o envio de uma mensagem ao superior no início e ao final do labor, bem como a exigência de relatórios detalhados de atividades desenvolvidas durante o horário a disposição do empregador", esclarece Cyntia. 
Com o crescimento do trabalho remoto no período pós-pandemia da Covid-19, a fiscalização das condições laborais se tornou um desafio ainda maior. Antes, os auditores fiscais visitavam empresas para averiguar se tudo estava dentro da legislação. Hoje, precisam supervisionar a casa de milhões de pessoas. No Brasil, há cerca de 1,9 mil Auditores Fiscais do Trabalho (AFT). O número está muito abaixo dos 5,4 mil profissionais indicados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como mínimo necessário para atender uma população economicamente ativa que ultrapassa os 108 milhões, como a brasileira. 
O auditor fiscal Nei Costa explica que a fiscalização se tornou mais complicada quando foi implementado o modelo do home office.
O auditor fiscal Nei Costa explica que a fiscalização se tornou mais complicada com o modelo do home office - Arquivo Pessoal
O auditor fiscal Nei Costa explica que a fiscalização se tornou mais complicada com o modelo do home officeArquivo Pessoal
"Temos a prerrogativa de ir no local de trabalho do funcionário, na casa dele. No entanto, é necessário que o empregado autorize a entrada. Durante essa inspeção, verificamos as condições de trabalho e ajustamos as características essenciais para o bom desempenho do funcionário, como um ambiente ergonomicamente adequado, com o mobiliário apropriado, por exemplo", afirma Costa. 
Costa destaca que a fiscalização só ocorre quando há denúncias por parte dos profissionais: "Os funcionários só costumam demandar quando o nível de incômodo fica muito grande. Muitos se sentem inseguros, especialmente quando a fiscalização precisa ocorrer dentro de suas residências. Ficam receosos que a empresa descubra que a análise aconteceu em seu posto de trabalho, com medo de retaliações ou até mesmo de serem demitidos."
Preferência pelo home office
Mesmo diante desses desafios, pesquisas indicam que a maioria dos profissionais deseja continuar atuando fora do escritório. Segundo levantamento da consultoria Michael Page, especializada em recrutamento de média e alta gerência, 92% das pessoas apontam preferência pelo modelo remoto ou híbrido. O resultado mostra que há uma resistência evidente ao retorno completo às atividades presenciais.
O consultor de Tecnologia e Informação Luciano da Silva Nascimento, de 32 anos, conta que começou a trabalhar no regime home office na pandemia e já está há cinco anos e meio nesse modelo.

"Inicialmente, trabalharia no modelo remoto temporariamente até que passei para uma vaga 100% home office. Ele tem me propiciado maior qualidade de vida, além de crescimento profissional e salarial. Tenho tido oportunidades que não teria no presencial, como atuar juntamente com times de outros estados e até mesmo de outros países", afirma.
Luciano afirma preferir o modelo home office - Arquivo Pessoal
Luciano afirma preferir o modelo home officeArquivo Pessoal
Nascimento, morador de Niterói, destaca que não sente saudades do modelo presencial: "Não vejo mais sentido em ir presencial só para mostrar que estou ali. Eu sou bem mais eficiente no home office. Pensando nisso, tenho concorrido para vagas no exterior, 100% remotas e pagando em dólar. Meu presente e futuro é trabalhar de casa e investir tempo e energia no que é mais importante para mim."
Um levantamento do PageGroup, conglomerado global de consultorias de recrutamento, realizado em 2023, mostrou que 75% dos brasileiros possuem preferência pelo híbrido. Fabiana Carvalho da Silva, de 49 anos, residente de São Gonçalo, atua nesse regime há sete meses como faturista e afirma que o modelo tem sido muito benéfico para sua rotina.
"Trabalho dois dias presencialmente e três em casa. Quando estou remotamente, não perco tempo com deslocamento e, ao final do expediente, já estou dentro da minha residência. Além de ter a flexibilidade de poder trabalhar em qualquer local onde tenha Internet. O modelo ainda me ajuda a cuidar da minha mãe, que tem câncer, e acompanhar o tratamento dela de perto", conta Fabiana.
"No meu caso, o modelo híbrido só me traz benefícios, uma vez que não tenho filhos pequenos e disponho de um lugar tranquilo para trabalhar. Quero manter o híbrido ou, se possível, até mesmo ficar no 100% home office", completa.
Fabiana atua no modelo híbrido há 7 meses e afirma que tem sido muito benéfico para rotina - Arquivo Pessoal
Fabiana atua no modelo híbrido há 7 meses e afirma que tem sido muito benéfico para rotinaArquivo Pessoal
O engenheiro de software Tiago Cordeiro, de 36 anos, conta que trabalha 100% remotamente e com horários totalmente flexíveis, o que melhorou consideravelmente sua qualidade de vida.
"Na empresa, temos o princípio de trabalho remoto assíncrono, no qual há flexibilidade de horário. Posso acordar bem mais tarde do que se fosse necessário ir presencialmente, mas prefiro levantar cedo para ir à academia e depois começar as atividades. Consigo fazer minhas refeições em casa e, após o almoço, posso descansar, ver TV, deitar e brincar com meus cachorros. Com certeza, prefiro o home office", diz o engenheiro.
Um levantamento da Conquer Business School revelou que 77% dos profissionais que atuam remotamente acabam fazendo horas extras por dificuldades em gerenciar o tempo e manter uma rotina bem definida. Essa falta de delimitação entre o trabalho e a vida pessoal também aparece no relato do Tiago.
Tiago conta que o home office melhorou sua qualidade de vida - Arquivo Pessoal
Tiago conta que o home office melhorou sua qualidade de vidaArquivo Pessoal
"O principal desafio é saber separar o tempo de trabalho e o pessoal. Isso parece bobeira, mas às vezes você acaba trabalhando até mais. Já aconteceu de terminar o expediente, ter algum insight sobre um problema que precisava resolver e acabei voltando para o computador", explicou.
O diretor de Recursos Humanos da empresa de tecnologia Everymind, Eduardo Nunes, afirma que a gestão de equipes remotas traz inúmeros benefícios, mas também apresenta desafios únicos que exigem uma abordagem proativa e adaptativa.
"O desafio mais significativo é a manutenção da comunicação e da colaboração. A falta de contato
físico pode impactar o diálogo informal, vital para a coesão da equipe e para a rápida resolução de problemas. Para contornar isso, incentivamos reuniões regulares (síncronas e assíncronas) e promovemos canais abertos para feedback e troca de ideias, além de uma liderança próxima, com escuta ativa", explica o diretor.
Nunes destaca que a companhia, desde a sua fundação, já atuava em formato híbrido e que atualmente 95% dos mais de 500 colaboradores podem exercer suas funções de qualquer lugar, mantendo a produtividade e flexibilidade do sistema.
Eduardo destaca que para superar os desafios do home office é necessária uma abordagem proativa e adaptativa - Arquivo Pessoal
Eduardo destaca que para superar os desafios do home office é necessária uma abordagem proativa e adaptativaArquivo Pessoal
"Nossa política de trabalho remoto foi construída sobre a premissa de que confiamos em nossos colaboradores para gerenciar suas responsabilidades e entregar resultados, independentemente de onde estejam. Essa confiança mútua é a base que sustenta todo o nosso modelo, permitindo que a flexibilidade seja uma ferramenta de empoderamento", ressalta.  
Segundo dados do IBGE, 8,3% dos brasileiros trabalhavam em casa em 2023, enquanto, no período pré-pandemia, em 2019, eram cerca de 5,2%. O número mostra o crescimento do home office no País, que tem impulsionado mudanças na cultura corporativa e na forma como as empresas atuam. Se, por um lado, trabalhadores relatam ganhos de qualidade de vida, por outro, gestores enfrentam o desafio de manter o engajamento. Nesse cenário, o trabalho híbrido e o remoto deixam de ser exceções e passam a ocupar um espaço cada vez mais relevante no mercado.
Futuro do home office
A migração do trabalho presencial para o remoto tem se mostrado uma tendência mundial. Conforme dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a modalidade poderia ser adotada em 22,7% dos empregos no Brasil, o que alcançaria mais de 20 milhões de pessoas. No Rio de Janeiro, por exemplo, 26,7% da população teria potencial para atuar no home office.
O presidente da Federação Nacional dos Trabalhadores em Tecnologia da Informação (Fenati), Emerson Morresi, afirma que a expansão do modelo remoto é fundamental para ampliar a atuação de profissionais em diferentes estados e até mesmo ao redor do mundo.
Morresi avalia que o modelo remoto é um avanço importante para os trabalhadores de TI - Arquivo Pessoal
Morresi avalia que o modelo remoto é um avanço importante para os trabalhadores de TIArquivo Pessoal
"Nós vemos o trabalho remoto e o híbrido como uma realidade da TI no Brasil e defendemos que a adoção seja negociada e regrada. É um avanço importante para os trabalhadores, que agora não têm mais fronteiras para atuar. O tempo perdido no trânsito das grandes cidades virou tempo com a família e amigos, para estudar e até descansar, o que contribui para a saúde e o bem-estar. Uma pesquisa recente da Fenati mostra que 95% dos profissionais da área preferem o home office", explica Morresi.
Na avaliação de Morresi, o modelo deve se firmar de vez no País, acompanhando as transformações do mercado de trabalho: "O desenho que vemos é de consolidação do híbrido com forte espaço para o remoto — inclusive com mais vagas anunciadas como home office. Em concursos e seleções públicas de TI, o remoto também aparece como possibilidade. Ou seja: a tendência não é 'voltar ao passado', e sim estabilizar modelos flexíveis negociados."
Conselhos Jurídicos
Para garantir que o trabalho remoto seja seguro tanto para empregados quanto para empregadores, é importante ficar atento às responsabilidades de cada parte. A advogada trabalhista Carolina Tupinambá destaca os principais cuidados que devem ser adotados por ambas as partes. 
"Para os trabalhadores, é essencial manter o autocontrole da jornada, protegendo a saúde mental, já que é comum ultrapassar o horário sem perceber. Também é importante adotar medidas relacionadas ao ambiente doméstico, como garantir a privacidade e o isolamento adequado para cumprimento das atividades. Caso surjam dúvidas, os canais de ouvidoria estão disponíveis para orientar sobre os direitos do trabalhador", explica Tupinambá.
Segundo Carolina, é importante que ambas as partes acertarem tudo previamente em contrato para evitar problemas futuros - Arquivo Pessoal
Segundo Carolina, é importante que ambas as partes acertarem tudo previamente em contrato para evitar problemas futurosArquivo Pessoal
Pelo lado dos empregadores, a especialista ressalta que tudo deve ser previamente acordado no contrato: "Um código de conduta claro e transparente é fundamental para alinhar expectativas, conforme o artigo 75 da legislação. Além disso, treinamentos sobre saúde e segurança do trabalho ajudam o empregado a manter boas práticas onde quer que desempenhe o teletrabalho", conclui.
O home office e o modelo híbrido, apesar dos desafios como gestão de tempo e monitoramento das atividades, mostram-se cada vez mais consolidados no País. Com direitos assegurados pela legislação e atenção às responsabilidades dos empregadores e empregados, o formato pode trazer ganhos em qualidade de vida — como evitar trânsito e passar mais tempo com a família —, além de aumentar a produtividade e a flexibilidade. Para que esses benefícios se concretizem, é essencial que o modelo seja bem estruturado e baseado no diálogo entre as partes, como destacou a advogada.
* Reportagem do estagiário João Santos, sob supervisão de Marlucio Luna