Marcelo LarangeiraDivulgação

Não vim aqui falar da "maior polêmica de todos os tempos". Nem poderia por força do Estatuto que regula a minha profissão. Não sou parte deste conflito, tão pouco tenho procuração para representá-las. Não presenciei e não conversei com as pessoas envolvidas, por fim, desconheço os sentimentos de cada um.
Um dos assuntos que atraem mais a atenção das pessoas são as relações em que o privado e o público são indiscerníveis. O que se infere sobre esta estória revelada numa confissão em rede nacional é a complexidade das relações familiares.
Os conflitos de interesses entre pais e filhos não são nenhuma novidade. Os especialistas-realistas do Direito das Famílias e o Poder Judiciário sabem disso. Larissa Manoela e os seus pais não foram os primeiros e nem serão os últimos. A estadunidense Britney Spears viveu algo semelhante.
A polêmica gravita sobre os limites da autonomia da vontade de uma pessoa, que se encontra no interior do poder hierárquico da família nuclear. Embalada pela televisão, colunas e redes sociais, não se fala de outra coisa, daí, as perguntas são inevitáveis: e aí? O que o Direito diz sobre isso? A minha resposta é sempre a mesma: depende do ângulo que se analisa.
Por exemplo, a questão patrimonial pode ser pacificada pelo Direito Privado através das ações judiciais para declarar nulidade de cláusulas abusivas em um contrato civil ou empresarial. Ainda, se a relação é abusiva entre pais e filhos e resultar em dano emocional, a conduta é punível pelo Direito Penal. Caso o dano ocorra em razão do gênero, a Lei Maria da Penha poderá ser acionada para proteger a mulher, trans ou cis.
O Direito resolve o problema à sua maneira, mas também traz suas contradições quando investe os pais do poder familiar sem impor um limite claro de exercício. Sua perda ocorre em situações de violência extremada e deve ser comprovada em processo judicial, entretanto, aquilo que está no meio termo, a lei civil deixa de fora. Enquanto isso, a crise entre pais e filhos pelo conflito de interesses permanece sem uma clara mediação da lei.
Já escreveu Antônio Gramsci que a crise consiste no velho que está morrendo e no novo que não pode nascer; neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece.
Enquanto o novo não nasce, o problema mais profundo permanece, ou seja, as tensões resultantes destes conflitos, gerados em alguns casos pelo excesso no exercício do poder familiar, e é ele quem dirige as escolhas dos filhos até os 18 anos, em regra.
Foi o que aconteceu com Larissa Manoela, que começou a trabalhar já na infância no showbiz. Os seus contratos de trabalhos foram assinados por seus pais e autorizados pelo poder familiar. A decisão não foi o resultado da sua vontade, mas provém da análise do custo-benefício realizado por terceiros.
Talvez, se a escolha estivesse em suas mãos, ela poderia ter escolhido brincar com outras crianças no parque, ao invés de passar horas a fio com maquiadores, decorando textos, cercada de adultos e câmeras de televisão.
A atriz brasileira viveu por quase toda a vida em estado de heteronomia, ou seja, quando um ser humano exerce o poder de decisão sobre a vida do outro. O contrário deste estado é a autonomia da vontade, que é a faculdade do ser humano em se autodeterminar, em fazer as suas próprias escolhas. A autonomia da vontade se liga a essa ideia. De acordo com Kant, ter autonomia é reconhecer que aquela pessoa é digna de respeito, consideração e a reconhece como parte da espécie humana.
Poder familiar não é carta branca para os pais. Ouvir a criança, entender seus desejos é dar dignidade a um ser humano em formação. No entanto, alguns pais ainda exercem o poder familiar com a mesma ideia do direito romano antigo, em que a lei autorizava o pai a ter o controle pleno da vida do filho, inclusive, de retirar a vida do próprio filho, em determinados casos. Para os romanos, era o pai que concedia a vida, por isso mesmo, poderia tirá-la sem que o ato fosse considerado homicídio.
Para se verem livres da heteronomia do poder familiar pós-maioridade, possivelmente, Larissa e Britney conversaram com um exército de contadores e advogados para reconfigurar sua relação com seus pais. Somado a isso, o esforço da retomada da autodeterminação exigiu-lhes energia, tempo, dinheiro e, principalmente, estrutura emocional. Romper com nossos pais é o mesmo que romper com os nossos mais profundos arquétipos, que é o sentimento de segurança ontológica, de confiança e fé, pois durante a vida toda, somos ensinados a acreditar que os nossos pais sempre sabem o que é melhor para nós.
Penso com meus botões nas pequenas Marias e Carolinas, que se encontram em situação semelhante a Larissa e Britney, mas ainda vagam no labirinto kafkiano do excesso do poder familiar por razões diversas. Não são ouvidas, são silenciadas e convencidas que a heteronomia é o caminho natural da vida.
Talvez, os pais não saibam disso, fazem porque, um dia, seus pais também agiram assim com eles. Não costumavam pedir a opinião deles para decidir e assim por diante. É difícil escapar do eterno retorno de Nietzsche. Os episódios de Larissa e Britney são consequências de uma racionalidade mais profunda, que se reproduz em maior ou menor grau nas relações familiares.
Se eu pudesse conversar com Larissa ou Britney sobre essa questão, eu faria a seguinte pergunta: se vocês pudessem voltar no tempo e lhes fosse dado o poder de escrever suas biografias com plena liberdade, há algo que vocês mudariam? Se a resposta for sim, o que vocês mudariam?
Marcelo Larangeira, ouvidor-adjunto da OAB Seccional do Rio de Janeiro, advogado sócio do Escritório de Advocacia Larangeira Advogados Associados, doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito – PPGSD UFF, professor de Direito Penal e Processo Penal, Direito Processual Coletivo e Direito Eleitoral.