William Douglas Reprodução
Após a infeliz declaração que equiparou a guerra ao Holocausto (a Shoah), ainda não corrigida, a falta de correção histórica e de isenção vem se repetindo. Citaremos dois casos mais recentes. O primeiro, as manifestações do Ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, no artigo “Cessar-fogo e Palestina na ONU, necessidades urgentes”, publicada no Jornal “O Estado de São Paulo” , em 25/2/2024. O segundo, a parcialidade percebida a partir da comparação entre as Notas do MRE diante do ataque de Israel ao prédio anexo à Embaixada Iraniana na Síria e do ataque iraniano a Israel. O ataque pontual de Israel foi objeto de palavras como "(o Brasil) condena o ataque aéreo" e o segundo, de escala muito maior e que atingiu civis, mereceu as palavras "(o Brasil) acompanha com grave preocupação, relatos de envio de drones e mísseis". O termo "envio", muito apropriado para cartas, é de um lamentável e revelador eufemismo.
Deveria ser lugar-comum às autoridades compreenderem o momento delicado e complexidade intrínseca ao conflito do Oriente Médio. Igualmente relevante, é que a abordagem seja imparcial e equilibrada, como manda a Constituição pátria, buscando soluções justas que promovam a paz e a estabilidade na região. Isso, se ocorrer, colocará o Brasil em uma posição de respeito na comunidade internacional. Se não ocorrer, além da violação da Lei Maior, diminuirá a credibilidade e respeitabilidade do nosso país.
É perturbador e inaceitável o tratamento da situação com parcialidade, sem levar em consideração os anseios da grande maioria dos brasileiros nem as implicações geopolíticas do conflito – e, menos ainda, o descumprimento das determinações da Constituição Federal. Essa falta de neutralidade e de isonomia é revelada em sete pontos.
2. No artigo citado, o Ministro Mauro Vieira relata que algumas "conclusões consensuais surgiram naturalmente". É muito fácil alcançar conclusões consensuais quando se conversa com apenas um dos lados envolvidos em um conflito. Seria o mesmo que se reunir apenas com Rússia e Belarus ou então somente buscar a opinião da Ucrânia e afirmar ter chegado a um consenso.
3. Entre as "conclusões consensuais" surgidas, naturalmente, está a de que o Brasil tem um lugar assegurado no debate sobre a Palestina. Mas a conclusão dos países visitados sobre nosso país advém mais da parcialidade brasileira em favor deles, do que de efetiva contribuição para amenizar ou chegar a uma fórmula que permita por fim do conflito. Fica-se com a impressão que essa posição de “relevância” é buscada mais por vaidade e necessidade de reafirmação do que em decorrência de análise coerente. Se o interesse real for promover a paz, o Brasil só será relevante se obtiver a confiança dos dois lados, algo evidentemente inviável no momento, por força da absoluta falta de neutralidade até aqui demonstrada.
4. O MRE mencionou 6 mil palestinos de origem brasileira que vivem na Cisjordânia e 22 mil brasileiros e descendentes que vivem no Líbano, 4 mil deles na fronteira com Israel. Ótimo saber disso! Faltou, porém, ao MRE dizer quantos israelenses de origem brasileira vivem em Israel. Faltou dizer quantos brasileiros e descendentes estão na zona de fronteira com o Líbano e foram deslocados por causa dos mísseis do Hezbollah. Faltou ainda pedir ao Irã e ao Hezbollah que parem de atacar alvos civis no norte de Israel. A contagem e menção do número de brasileiros na Cisjordânia e no Líbano somada ao silêncio sobre os que moram em Israel é simbólica e reveladora. Seria o caso de se cogitar em predileção, imparcialidade ou até um ato falho de antissemitismo? São reflexões urgentes e necessárias.
5. No mesmo artigo, o ministro comemora a posição de liderança do Brasil e que o país é "muito bem-vindo", mas não anota que tornou-se persona non grata para a outra parte do conflito. Quem pode obter o status de mediador desta forma? O Brasil teria muito mais credibilidade para mediar as negociações se, finalmente, pedisse ao Irã, ou ao Hamas, que a Cruz Vermelha visitasse o brasileiro Michel Nisenbaum, sequestrado pelos terroristas e já há seis meses mantido como refém em Gaza. Ou se demandasse o fim dos ataques com mísseis e esfaqueamentos contra civis em Israel, se pedisse desculpas pela comparação grotesca entre a situação na faixa e o extermínio de 6 milhões de judeus, ou ainda se lamentasse, de forma convincente, a perda dos brasileiros Carla Stelzer, Ranani Glazer e Bruna Valeanu nos ataques terroristas de 7/10. Após o recente ataque iraniano a Israel, o Hezbollah voltou a atacar civis no norte do país, causando vítimas, e, mais uma vez, sem manifestações de repúdio do MRE.
6. O artigo fala dos civis em Gaza, na Cisjordania, na Síria e na fronteira com o Líbano, mas mantém constrangedor silêncio sobre os reféns, entre os quais civis, mulheres, crianças, bebês e idosos. Raríssimas menções esporádicas e retóricas para estes, e menções constantes para as vítimas palestinas, dizem nas entrelinhas que "os reféns não existem" ou "são menos valiosos" para o MRE. No caso do massivo ataque iraniano, uma menina beduína israelense foi gravemente ferida. Será que ela é valiosa?
7. Por fim, a diplomacia brasileira se contradiz ao defender uma solução de dois Estados, ao pedir o reconhecimento da Palestina pela ONU e não pedir simultaneamente aos países árabes o reconhecimento de Israel. Trata-se, portanto, de hipocrisia numa das falhas diplomáticas mais gritantes da República.
A inevitável conclusão é de que a conduta brasileira viola:
Anote-se a expressa violação do artigo 19 da Constituição, que estabelece que “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si". Brasileiros palestinos estão tendo tratamento diferente e privilegiado em relação aos brasileiros judeus. Essa preferência por uns em detrimento de outros atinge a isonomia, princípio basilar da República. Queremos, e a Constituição manda, que todos sejam indistintamente bem tratados.
Por fim, também é necessário refletir sobre a existência em tese de crimes de responsabilidade, como definidos pela Lei n. 1.079. Em seu artigo 5º, a lei diz que são crimes de responsabilidade contra a existência política da União “cometer ato de hostilidade contra nação estrangeira, expondo a República ao perigo da guerra, ou comprometendo-lhe a neutralidade” e “celebrar tratados, convenções ou ajustes que comprometam a dignidade da Nação”. A neutralidade é um princípio que não pode ser abandonado, ainda mais quando um lado sistematicamente pratica estupro, sequestro e terrorismo.
As conversas e visitas, ou seja, os "ajustes" feitos apenas com um dos lados, as menções e Notas em termos e frequência inexplicavelmente distinta, o tratamento preferencial com civis palestinos e discriminatório com civis israelenses comprometem a dignidade da nação e sua credibilidade no cenário internacional. O conjunto da obra revela hostilidade contra Israel e leniência com terroristas e com o Irã, que os financia. Isso compromete a neutralidade do país e o tratamento isonômico entre brasileiros, obrigações impostas pela Constituição e pela Lei dos Crimes de Responsabilidade.
Nelson Mandela, que tanto inspira os governantes brasileiros, deveria ser lembrado neste momento. Ele ensinou que “como movimento, reconhecemos a legitimidade do nacionalismo palestino, assim como reconhecemos a legitimidade do sionismo como um nacionalismo judaico. Insistimos no direito do Estado de Israel de existir dentro de fronteiras seguras, mas com igual vigor apoiamos o direito palestino à autodeterminação nacional”.
É preciso que a atuação do Brasil nesse assunto seja pautada pela Constituição Federal, cujas regras não são opcionais. Elas existem e são valiosas para nós.
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