Padre Ronilson Braga diante da Capela de São João Batista: "Queremos reparar esta violência"Pedro Ivo
"Pelo que pude perceber em conversa com outros padres, não há objeção da igreja aos painéis. Creio, inclusive, que o Dom Orani Tempesta (Arcebispo do Rio) seja a favor de que eles sejam mostrados ao público", diz o padre Ronilson, que classifica a interdição da obra como um ato de violência contra a Cultura:
"Queremos reparar esta violência. Aquela teologia europeizada da época, com Jesus Cristo de olhos azuis, já não faz mais sentido. Hoje, estamos no momento da teologia contextual, uma igreja encarnada na sociedade, em que vemos Jesus, que é Deus, no rosto de cada cidadão. Sendo assim, considero que Carlos Bastos teve uma visão profética. Seu trabalho precisa ser reabilitado", afirma padre Ronilson, que reveza a celebração na capela aos domingos ao lado do padre Hugo Galvão.
Os jornais da época deram ampla cobertura à interdição da obra e à via crucis percorrida por Carlos Bastos na tentativa de concluir seu trabalho, que permanece incompleto. As polêmicas principais foram ter representado Jesus Cristo com o rosto de Caetano Veloso, Pelé com asas e auréola de anjo e a pintora Djanira como Santa Isabel, mãe de João Batista. Bastos foi obrigado a removê-los dos murais, onde permanecem outras personalidades.
O general Médici, que presidia o Brasil, está entre Di Cavalcanti e Dorival Caymmi. No alto à esquerda, Gal Costa aparece montada em um cavalo e, no lado oposto, Vinicius de Moraes, Jorge Amado e Adolfo Bloch. Já na outra parede lateral da capela, estão pintados outros personagens de destaque na época, como o indigenista Orlando Villas-Bôas, o apresentador Flávio Cavalcanti e o que aparentam ser Belchior e Sérgio Mendes.
"Estávamos na época da ditadura militar. O que aconteceu foi censura. E esta censura permanece em pleno século 21. Isto é um absurdo. Ainda mais depois de um período de trevas pelo qual acabamos de passar. Esses tecidos têm que ser retirados", argumenta a museóloga Izolete Raisson, ex-funcionária do Museu Histórico da Cidade do Rio.
Padre Ronilson também classifica o ato de cobrir os painéis como censura:
"Um povo acaba se parecendo com seu governo e a igreja é feita do povo, não é uma coisa à parte. Em 1972, estávamos numa ditadura, e a igreja acabou usando o dispositivo da censura para vetar a obra. Hoje, os tempos são outros. Quem pinta, pinta para os outros. Os painéis são bens culturais e turísticos. As pessoas têm o direito de vê-los".
Telegrama de Médici autorizou reprodução de seu rosto
A Capela de São João Batista estava fechada há 30 anos quando Carlos Bastos (1925-2004) iniciou sua pintura em 1972, recobrindo toda a dimensão das paredes laterais internas, de 9x4m cada. A contratação fora feita por intermédio da Associação dos Amigos do Museu Histórico da Cidade.
Em 3 de abril daquele ano, antes de os trabalhos começarem, o Jornal do Brasil informava que o pintor iria substituir personagens bíblicos por pessoas de destaque na época. "É uma forma de permitir aos noivos ou frequentadores identificar-se com as figuras religiosas. Por isso só vou usar pessoas que se destacaram através da arte", explicou o pintor ao JB.
Dois meses depois veio o primeiro veto da igreja, contornado após o artista concordar em retirar a representação de Caetano Veloso e Djanira como figuras bíblicas. Pelé, pintado como um anjo negro, também foi apagado. Ainda assim, a capela foi fechada e a obra, interditada.
Carlos Bastos só pôde voltar a pintar em setembro, após ter apresentado telegrama recebido do então presidente Médici com a permissão de que seu rosto fosse representado no painel. No dia seguinte, porém, teve que interromper o trabalho novamente, a pedido do então secretário de Cultura do estado, Fernando Barata.
O conjunto formado pela Capela de São João Batista e o Museu Histórico da Cidade é administrado pela Prefeitura do Rio e tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico (Inepac). Segundo a Secretaria municipal de Cultura (SMC), os painéis foram cobertos em 2016 com "tecido que foi recomendado por profissionais de conservação e com a concordância do Inepc". O objetivo, diz a pasta, é proteger a pintura, que precisa de restauro.
Já o Inepac informou que a instalação dos tecidos não foi realizada pelo órgão, mas sim, autorizada, visando a manutenção arquitetônica do bem. E que, em vistoria realizada em abril deste ano, verificou-se que os painéis estão preservados.
O Inepac afirmou ainda que, à época, não houve solicitação para execução da pintura, que fora feita de forma irregular. O órgão disse que desconhece projetos de restauração, mas que está aberto ao diálogo para a solução da demanda.
Já Heloisa Queiroz, gerente de museus da SMC, disse que a pasta foi informada recentemente sobre um projeto de restauro dos painéis, que está sendo elaborado pela Associação dos Amigos do Museu para ser apresentado à SMC e ao Inepac. "Até o momento, não recebemos nenhuma solicitação de mudanças ou projeto da Associação dos Amigos do Museu", diz Heloisa.
Procuradas pelo DIA, a Arquidiocese do Rio de Janeiro e Associação dos Amigos do Museu não responderam aos questionamentos até a publicação desta matéria.
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