O maestro Filipe Kochem rege a Orquestra Maré do Amanhã, que fará turnê em Portugal em julho de 2023Julio Moreira / Orquestra Maré do Amanhã

Rio - Lisboa, Arouca e Porto. As três cidades portuguesas consistem no novo destino da Orquestra Maré do Amanhã (OMA), composta por jovens do Complexo de Favelas da Maré, na Zona Norte do Rio. As crianças e adolescentes já se apresentaram na Europa, mas é a primeira vez em Portugal, e esta viagem de julho tem missões especiais: implementar no país o projeto que mudou a vida de milhares de pessoas no Rio de Janeiro e, posteriormente, no Pará, além de tentar receber a bênção do Papa Francisco durante a Jornada Mundial da Juventude, que este ano acontecerá em solo lisboeta. É só uma questão de a Igreja Católica responder ao convite.
Vinte e três jovens integrantes da orquestra, com idades entre 15 e 23 anos, participarão da turnê que tem um breve prelúdio em Londres, onde o grupo se apresentará na Embaixada do Brasil, e em Madri, na filial da Galp, empresa do setor de energia patrocinadora da Orquestra Maré do Amanhã. Grande parte desses jovens faz parte do projeto desde que ele foi fundado pelo jornalista Carlos Eduardo Prazeres, em 2010.
Com a premissa de tornar os integrantes celebridades, Carlos Eduardo Prazeres sonha com a mudança da realidade da favela:
"Os instrumentistas são referências dentro da Maré. Os garotinhos querem ser iguais aos músicos e não como os bandidos", afirmou em entrevista exclusiva ao DIA. "Eu falo para os alunos, para os professores da orquestra: 'quem vai transformar isso numa região de paz são vocês. Vocês que moram aqui'", acrescentou.
Um dos motivos de querer levar o projeto para Portugal se deve à origem de seu pai, Armando Prazeres, maestro português criador, em 1972, no Rio de Janeiro, da Orquestra Pró-Música. Preocupada com cunho social, a orquestra incluía em suas apresentações concertos em favelas, para levar música para quem não tem acesso, e em igrejas e salas de música renomadas da cidade, para campanhas de arrecadação de alimentos. Em 1994, a orquestra passou a se chamar Orquestra Petrobras Pró Música, levando o nome de seu patrocinador. Em 2006, já após a morte de Armando, o conjunto se transformou na Orquestra Petrobrás Sinfônica, como ainda é nos dias de hoje.
No próximo ano, em 2024, Armando faria 90 anos e a sua morte completa 25. A turnê em Portugal, com o intuito de convencer a Galp a patrocinar o projeto na república, também é uma forma de Carlos Eduardo homenagear o seu pápa (em português de Portugal).
Tanto que o roteiro foi cuidadosamente pensado de maneira a levar a música para lugares marginalizados, principal inspiração de Armando em seus trabalhos. "Eu estudava jornalismo na PUC (Pontifícia Universidade Católica) quando o meu pai me chamou para trabalhar com ele no Pró-Música, levando música para as favelas. A questão da parte social sempre me encantou. Eu já era formado em Letras, fiz antes do jornalismo, e subia a Favela da Rocinha para dar aula de Português e aulas de reforço para as crianças. Eu amei quando ele me chamou para fazer este projeto, era tudo o que eu queria. Viver de socializar os bens culturais com quem não tinha acesso a ele era o propósito do meu pai", recordou Carlos Eduardo.
Em Lisboa, a OMA fará um tipo de performance chamada de flash mob, que acontece quando um grupo de pessoas se reúne e faz uma apresentação rápida e inesperada em um lugar público.
Já em Porto e Arouca, cidade natal de Armando, a orquestra planeja concertos em lugares mais pobres das cidades, onde tem imigrantes, principalmente africanos.
"Eu quero convencer a Galp a ter esse projeto em Portugal para transformar. Mostrar que o trabalho frutificou", revelou Carlos que, junto com o maestro Filipe Köchem, acompanhará os jovens durante o período de shows.
Para encerrar as exibições, a orquestra pretende uma particular: interpretar o tango 'Adiós Nonino', do compositor argentino Astor Piazzolla (1921-1992), para o também argentino Papa Francisco, durante a Jornada Mundial da Juventude.
Carlos está tentando contato com a Igreja Católica para o grupo receber a bênção do papa, já que os brasileiros ainda estarão em Lisboa ao longo do evento católico. "Nós estamos tentando contato com as igrejas de Portugal e Brasil, não tomaríamos muito tempo dele (do papa), apenas 20, 30 segundos, ele dá uma benção aos meninos, extensiva à Maré, e nós vamos embora. Se ele permitir, preparamos 'Adiós Nonino'. Mas se ele não quiser ouvir a música, é só a bênção. Porém, não estamos conseguindo resposta.  Eu, inclusive, ofereci de a orquestra tocar para os voluntários durante a jornada, fazer um concerto. Mas está difícil, em Portugal ninguém responde nada", desabafou Carlos. Em 2017, o conjunto conseguiu a proeza: os músicos foram para o Vaticano e tocaram para o Papa Francisco.
Fazer parte de rituais católicos parece ser uma inspiração de família. Na primeira visita do papa João Paulo II ao Brasil, em 1980, Armando Prazeres regeu 2 mil vozes na celebração de uma missa, no Aterro do Flamengo, na Zona Sul. À ocasião, a cerimônia foi exibida ao vivo para todo o país.

Orquestra Maré do Amanhã, Patrimônio Cultural Imaterial do Rio de Janeiro
"Onde interromperam o sonho dele, eu fiz o sonho nascer". Assim narra Carlos Eduardo sobre o começo da Orquestra Maré do Amanhã. O jornalista e fundador da OMA se refere ao sonho de seu pai, o regente Armando Prazeres, vítima de um sequestro-relâmpago em 1999, em Laranjeiras. O carro azul de Armando foi encontrado em uma rua próxima ao Complexo de Favelas da Maré, com muitas marcas de sangue. Os investigadores da Divisão Antissequestro (DAS) concluíram na época que os envolvidos no crime moravam na região. Assim, motivado a transformar sua dor em esperança, Carlos fez do chão onde o pai teve os sonhos atravessados um palco para o surgimento de outros tantos.
O projeto começou em 2010 com 26 alunos e hoje atende a todas as crianças matriculadas na região, alcançando mais de 3.500 estudantes do Complexo e feitos memoráveis, como tocar no Réveillon de Copacabana, na virada do ano de 2020, com a cantora Anitta, para um público estimado em 2,5 milhões de pessoas, aparecer no DVD de 50 anos de carreira da cantora Alcione, em 2022 e, no mesmo ano, participar do Lud Session, projeto musical da cantora Ludmilla.
Professores do projeto atuam nos Espaços de Desenvolvimento Infantil (EDIs), unidades de ensino da Prefeitura do Rio, ensinando música às crianças de 4 a 6 anos matriculadas nas creches públicas. Quem demonstra interesse e habilidade é encaminhado para a orquestra mirim e, mais tarde, seguindo o mesmo processo, podem alcançar a orquestra principal, que ensaia na sede do projeto.
A violonista Andressa Lelis, de 15 anos, está na principal há 4 e embarcará para a turnê de Portugal:
"A Orquestra mudou o rumo da minha vida. Eu pensava em seguir caminhos completamente diferentes, mas a música me abriu um leque de possibilidades e interesses que eu não sabia que tinha. Sou muito grata", afirmou a jovem.
A flautista Maria Eduarda tornou-se independente financeiramente após entrar na OMA: "Eu percebi que depois que ela entrou na Orquestra, ela adquiriu muitas experiências positivas. Conheceu diversos lugares do Brasil e tocou até no Rock in Rio. Minha filha fez de um hobby o seu trabalho e conquistou sua independência financeira", contou a mãe Nathalia Pontes.
Para Carlos Eduardo, a chance é o motor da transformação social: "A gente precisa começar a dar oportunidade. O que falta no Brasil, nas favelas, é oportunidade. Pois com oportunidade descobre-se talentos. É preciso parar de investir em segurança e investir em oportunidade. Para terem sonho, sonharem com outras vidas e saírem daquela que vivem. Mas quem quer investir em algo que vai ficar para o próximo governo? Não é fazer política, é fazer o social, é fazer o certo", enfatizou Carlos.
Pedro Lucas Brandão Leal, de 19 anos, violonista integrante da orquestra, garante que a oportunidade oferecida pela OMA foi o que mudou a sua vida: "Descobri a Orquestra através de uma conhecida e fui atrás das redes sociais para acompanhar e esperar abrirem as inscrições. A minha vida mudou completamente depois que entrei no projeto. Não consigo me imaginar em outro lugar e não sei o que seria do meu dia. A orquestra me deu uma oportunidade que nunca tive", contou, emocionado.