Caboclo Lalú ou Exú Ijelú: peça apreendida em 1934, em um terreiro na Rua Araújo Leitão, no Engenho NovoPedro Ivo / Agência O Dia

Rio - Em uma sala na reserva técnica do Museu da República, no Catete, a cada momento uma nova descoberta anima a equipe de pesquisadores. Enquanto mostram jornais antigos, uma fotografia na capa do jornal 'A Noite', de 1941, chama a atenção de Emanuelle Rosa: "Olha ali, Edu; não parece aquela flecha que a gente tem aqui no acervo?!", aponta. Ela e o historiador Eduardo Possidonio fazem parte do grupo que investiga a origem de 519 itens de religiões de matriz africana apreendidas pela Polícia Civil entre 1890 e 1940 e que hoje estão sob a guarda do museu. O trabalho é uma preparação para a exposição Nosso Sagrado que, a partir de setembro, mostrará o material ao público. 
"Deixa eu aumentar a imagem aqui... Sim! Está parecendo que é ela mesma", responde Eduardo que, junto com Emanuelle, parte para observar a flecha em uma das gavetas em que o acervo está acondicionado.
Este é o dia a dia de um trabalho de cruzamento de informações entre fontes como inquéritos e processos judiciais das apreensões, jornais da época e relatos de história oral, em um esforço para documentar o acervo, identificando nome, data, origem e significado das peças.
Com a flecha nas mãos, Emanuelle e Eduardo a colocam ao lado de uma escultura que, como já concluíram, é a que está estampada na foto do jornal. Simulam o mesmo posicionamento e, ao comparar com a imagem de 1941, chegam à conclusão de que, provavelmente, o objeto foi apreendido na mesma ocasião.
"Veja, as dimensões das peças juntas parecem as mesmas da foto", comenta o historiador.
"E agora, como atestar?", pergunta o repórter.
"Então, precisamos buscar mais material para tentar confirmar essa hipótese. Um dos caminhos é ir atrás de outras fotos desta mesma apreensão que nos permita visualização mais clara", explica Emanuelle.
Naquele ano, na foto da edição de 'A Noite', aparece Pai Sinzenado, preso em um terreiro em Madureira, no episódio conhecido como a "Devassa de 1941", quando 80 líderes religiosos foram presos após a polícia ter invadido, em 48 horas, 70 terreiros do Rio. Acima da imagem, o título 'Ofensiva contra os macumbeiros'.
"Na época, a polícia, então comandada por Filinto Müller, prendia costumeiramente essas lideranças sob as acusações de curandeirismo, espiritismo e exercício ilegal da medicina. Isso apesar de a Constituição Federal de 1891 ter definido o Brasil como estado laico", contextualiza Eduardo.
Os inquéritos policiais, que na época tinham a função de combater as práticas religiosas das casas afro-brasileiras, são hoje a principal fonte para reconstituir aspectos da liturgia de uma época em que havia uma pluralidade maior de vertentes de culto. Eduardo cita que, na pesquisa, identificaram que havia muçulmanos atendendo em casas de candomblé.
"Com toda a perseguição da época, muita coisa acabou se perdendo. Havia um clamor da sociedade civil para que a polícia perseguisse essas casas. E os jornais davam destaque às invasões dos terreiros e prisões das lideranças de uma forma até mesmo vexatória. Isso amedrontava as pessoas e as inibia de seguirem professando sua fé. Com isso, muita coisa acabou se perdendo".
Reconstituição e reparação histórica
O resgate vem se dando com a interação do grupo de pesquisadores com representantes dos principais terreiros de candomblé e umbanda do Rio, que costumeiramente vão ao Museu da República auxiliá-los na reconstituição histórica. Foi a partir dessa interação que chegaram ao significado do Caboclo Lalú ou Exú Ijelú, uma peça apreendida em 1934, em um terreiro na Rua Araújo Leitão, no Engenho Novo.
Na exposição, haverá, ao lado da imagem, um copo de vidro onde as pessoas poderão depositar moedas, já que, como explica Emanuelle, o contato com as lideranças apontou o significado da peça atrelado à prosperidade.
"Originalmente as moedas são postas no prato onde, ao centro, fica a imagem. Mas, como a moeda tem sujeira, criamos essa alternativa para proteger a peça. Dessa forma, alinhamos questões técnicas da museologia ao saber tradicional. É assim que estamos tratando as questões religiosas neste trabalho, de forma digna e respeitosa", detalha a museóloga
A origem da escultura foi identificada no processo judicial localizado pelos pesquisadores, no qual consta em foto da peça. O processo teve origem no inquérito lavrado pela então 1ª Delegacia de Tóxicos, Entorpecentes e Mystificações, que funcionava na Rua da Relação, no Centro. Na batida dos agentes, foi presa a mãe de santo Luzia Cardozo.
"O processo ainda nos permitiu identificar o escultor da peça, de nome Arthur Cunha, que vem a ser a testemunha de defesa de Luzia Cardoso na ação", diz Eduardo.
Até setembro, quando haverá a abertura da exposição Nosso Sagrado, há mais o que se descobrir, na reconstrução de todo um painel de reparação histórica.