"Diante de um cenário como esse, o pior a fazer é fechar os ouvidos para propostas como a de Trump e se recusar a avaliar o que poderia haver de positivo caso a iniciativa fosse levada adiante"Arte Paulo Márcio

A proposta do presidente Donald Trump, feita na terça-feira passada, de transformar a conturbada Faixa de Gaza num território sob administração dos Estados Unidos, ganhou manchetes de jornais do mundo inteiro e deu o que falar. Ao lado do primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu, que o visitou em Washington, Trump voltou a mencionar o plano de deslocar a população palestina para territórios no Egito e na Jordânia. E causou rebuliço ao anunciar a intenção de converter a Faixa de Gaza em algo que ele chamou de “Riviera do Oriente Médio”.
A ideia, que foi jogada ao ar sem o amparo de qualquer estudo ou de qualquer consulta prévia às partes interessadas, é transformar aquele “pedaço de terra” — como Trump se referiu à Faixa de Gaza — num complexo que atrairia turistas e geraria renda e empregos para a população local. A ideia foi prontamente rechaçada. A Arábia Saudita, um dos primeiros governos a se pronunciar, reafirmou sua “posição firme, constante e inabalável” pela implantação de um Estado palestino na região.
A questão reverberou no mundo. A França, o Reino Unido, a Austrália e outros aliados tradicionais dos Estados Unidos não pouparam críticas a Trump. O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, também se pronunciou. Ele culpou Israel por todo mal que tem acontecido no Oriente Médio — e criticou os Estados Unidos pelo apoio incondicional ao aliado. “Os Estados Unidos participaram do incentivo de tudo o que Israel fez na Faixa de Gaza”, disse Lula em entrevista a emissoras de rádio de Belo Horizonte.
“O que aconteceu em Gaza foi um genocídio e eu, sinceramente, não sei se os Estados Unidos, que fazem parte de tudo isso, seriam o país para cuidar” da região, disse Lula. “Quem tem que cuidar de Gaza são os palestinos. O que eles precisam é ter uma reparação de tudo aquilo que foi destruído, para que possam reconstruir suas casas, hospitais, escolas e viver dignamente com respeito”.

MENTIRA REPETIDA — Muita gente se manifestou sobre o assunto, até os terroristas do Hamas — os mesmos que, no dia 7 de outubro de 2023, invadiram o território israelense, estupraram mulheres, torturaram jovens indefesos, trucidaram idosos, estriparam crianças, cometeram 1200 assassinatos e arrastaram para suas masmorras, como reféns, 253 inocentes. Para o Hamas, a retirada da população do local significaria a perda do escudo protetor que, ao longo dos anos, vem lhes permitindo praticar atendados terroristas contra civis israelenses e, depois, se esconder atrás da população local.
Quem acompanha o conflito no Oriente Médio e não se seduz pela ideia fácil e oportunista de jogar nas costas de Israel a culpa por todos os males da região sabe como o Hamas age. O uso de hospitais e escolas como bases das milícias terroristas, assim como as ameaças a civis forçados a permanecer nas regiões bombardeadas para servir de escudos humanos são provas suficientes de que, para esse pessoal, a manutenção da Faixa de Gaza como um amontoado de pessoas vivendo em condições deploráveis é vista como essencial para se alcançar o objetivo de destruir o Estado de Israel.
Como se falasse em nome de cordeirinhos inocentes, e não de uma alcateia de lobos sanguinários, o “porta-voz” dos terroristas, Abdel Latif al Qanua, classificou a proposta de Trump como “racista”. Disse, ainda, que a ideia “está alinhada com a da extrema direita israelense e consiste em deslocar o nosso povo e erradicar a nossa causa”. O terrorista considerou a ideia “agressiva para nosso povo e nossa causa”. E afirmou que ela “não servirá para a estabilidade na região e apenas jogará mais lenha na fogueira”.
É repugnante ouvir palavras como essas, ditas por alguém que fala em nome de “ativistas” que — para citar apenas um exemplo de sua covardia — consideram legítimo sequestrar e manter inocentes no cativeiro por quase 500 dias. Seja como for, a insistência dos terroristas e de seus apoiadores em transferir para os agredidos a responsabilidade pelo conflito que eles mesmos provocaram é uma daquelas mentiras que estão dispostos a repetir mil vezes até que consigam transformá-las em verdades — como aprenderam com seu mestre, o ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels.

CONSEQUÊNCIAS — Num ambiente como esse, contaminado pelo radicalismo e pela lei da ação e reação, apenas uma ideia aparentemente absurda, como a de Trump, parece capaz de acrescentar novos argumentos à discussão. Diante da rejeição da proposta, a ideia de transformar a Faixa de Gaza na Riviera do Oriente Médio não tem chance de virar realidade. Mas, conforme observou o editor de assuntos internacionais da BBC, Jeremy Bowen, em artigo publicado na semana passada, “o plano de Trump para Gaza não acontecerá, mas terá consequências”. E essas consequências, sem dúvida, impactarão as vidas dos cerca de 2,3 milhões de pessoas que vivem nos mais ou menos 40 quilômetros de comprimento por 11 quilômetros de largura da Faixa de Gaza.
É preciso ter claro que, muito antes dos bombardeios intensos que destruíram ou danificaram praticamente todas as construções da área, as condições de vida na Faixa de Gaza já eram deploráveis. E, num ambiente deteriorado como aquele, é razoável supor que muitas das pessoas que vivem ali não veem a hora de deixar a região e encontrar um lugar melhor para viver.
O governo de Israel, inclusive, já anunciou a decisão de facilitar o deslocamento dos moradores da Faixa de Gaza que pretendam deixar a região com destino a países que se disponham a recebê-los como imigrantes ou exilados. Até o momento, porém, nenhum país, nem no mundo árabe nem de outras regiões do mundo, se dispôs a abrir a porta para acolher os palestinos...
O problema é complexo e, para resolvê-lo será preciso mais do que manifestações acaloradas em defesa do direito do povo palestino a viver na Faixa de Gaza. Qualquer proposta de solução deve levar em conta os aspectos práticos e logísticos que envolvem, antes da reconstrução das moradias e dos equipamentos públicos destruídos pela guerra, a remoção de milhões e milhões de toneladas de escombros. Apenas essa operação vai exigir anos de trabalho, maquinário, cuidados com a destinação dos rejeitos e, claro, investimentos vultosos.
Diante de um cenário como esse, o pior a fazer é fechar os ouvidos para propostas como a de Trump e se recusar a avaliar o que poderia haver de positivo caso a iniciativa fosse levada adiante. Entregar a administração da Faixa de Gaza aos Estados Unidos ou, talvez, a uma coligação sem ligações explícitas com um lado ou com o outro do conflito, seria trazer de volta a velha teoria do “algodão entre cristais” — que acelerou o movimento pela independência do Uruguai, concluído em 1828.
Naquele episódio, a Inglaterra, sob a liderança do então chanceler George Canning, achou necessário criar um anteparo capaz de reduzir os atritos entre os recém-independentes Brasil e Argentina — e, com isso, evitar que os dois se envolvessem num conflito que parecia iminente. A intenção do chanceler, que morreu um ano antes de ver o trabalho concluído, era evitar uma guerra que prejudicaria a expansão dos negócios ingleses na região. Assim, resolveu apoiar o movimento liderado por José Artigas e, com isso, contribuiu para a criação da República Oriental do Uruguai — cujo território era disputado pelos vizinhos maiores.

COVIS DO HAMAS — O que isso tem a ver com a Faixa de Gaza? Muita coisa! Guardadas as devidas proporções, a ideia de Trump, levada adiante, resultaria na transformação da Faixa de Gaza num anteparo capaz de evitar os choques inevitáveis na fronteira de dois países inimigos e seria importante até para viabilizar a ideia de criação de um Estado Palestino em territórios que hoje pertencem à Jordânia e ao Egito — que nem querem ouvir falar nessa possibilidade.
É preciso enfrentar essa discussão com mais seriedade. Da mesma forma que a ideia de Trump de fazer na Faixa de Gaza um complexo turístico internacional foi descartada sem discussão pelos adversários dos Estados Unidos e de Israel, a possibilidade de, pura e simplesmente, se implantar um Estado Palestino em Gaza e na Cisjordânia, como tudo indicava que aconteceria, morreu no dia 7 de outubro de 2023.
Israel sabe que qualquer Estado palestino que se implante na região neste momento será dominado pelos terroristas do Hamas. E, embora esteja enfraquecido por um ano e meio de guerra, o grupo continua vivo e disposto a dar demonstrações de força. Uma prova disso tem sido dada pelos terroristas bem armados, vestindo trajes de combate e com as caras escondidas atrás de panos pretos, que assumem posições ameaçadoras ao lado dos reféns recém libertados em função do atual acordo de cessar fogo mediado pelo Catar, pelo Egito e pela antiga administração democrata dos Estados Unidos. A atitude de tentar mostrar valentia ao lado de vítimas indefesas e acuadas não passa de uma provocação desnecessária de um bando que insiste em afirmar sua autoridade sobre Gaza.
Gestos como esse servem apenas para comprovar a impossibilidade da ideia de se instalar um Estado palestino na região, neste ou em qualquer outro momento nos próximos anos. Assim como o Hamas nunca renunciou a seu objetivo principal — que não é a instalação do Estado palestino, mas a destruição de Israel e a eliminação da presença do povo judeu da face da Terra — o governo de Benjamin Netanyahu, ou de qualquer outro primeiro-ministro que venha sucedê-lo, não desistirá do objetivo de perseguir e eliminar o bando terrorista até o último homem. Insistir neste momento, na criação pura e simples de um estado palestino na região neste momento não é apenas jogar lenha na fogueira. É tentar apagar o incêndio com gasolina.
É esse o cenário que deve servir como pano de fundo para a proposta apresentada por Trump na semana passada. A postura do presidente dos Estados Unidos nesse episódio faz lembrar a história de um delegado de polícia de uma cidadezinha do interior do Brasil. Cansado de ouvir queixas sobre as goteiras, a falta de conforto e outras precariedades da cela da delegacia, mandou colocar um bode para dividir o espaço exíguo com os prisioneiros. Quando isso aconteceu, eles deixaram de reclamar dos outros problemas e passaram a se queixar da presença do animal. Depois de uma semana, o lugar, que havia se transformado num inferno, se tornou um poço de tranquilidade depois que o bode foi tirado lá de dentro.
Trump sabe que a ideia da Riviera do Oriente Médio tem chances remotas de ir adiante. Mas, ao apresentá-la, ele fez como o delegado dessa história: criou um incômodo maior e mostrou que não basta reclamar da situação da população de Gaza nem adianta insistir na defesa da criação de um Estado palestino na região (algo que só não aconteceu no mesmo momento da criação de Israel, em 1948, porque os líderes palestinos se recusaram a compartilhar o espaço com o povo judeu).
Qualquer solução para o conflito no Oriente Médio precisa levar em conta os interesses de Israel. No rescaldo da discussão que se seguiu à sua proposta, Trump tem autoridade suficiente para chamar os países que se opuseram à sua ideia e estabelecer as condições para que eles participem do debate. E essas condições incluem não só o apoio verbal a um lado ou outro, mas também a disposição de ajudar a pagar a conta de uma solução que, seja ela qual for, exigirá muito dinheiro.