Em 1893, quatro navios que chegavam com grupos de imigrantes italianos a São Paulo tiveram que dar meia-volta. O motivo: uma epidemia de cólera que assolava a Europa e que fez vítimas entre os passageiros durante a viagem.
As embarcações foram proibidas pelas autoridades brasileiras de atracar nos portos de Santos (SP) e Rio de Janeiro, como registrou a historiadora Fernanda Rebelo (1975-2018), que se dedicou ao estudo da história das ciências e da saúde pública no Brasil.
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A estratégia era impedir a chegada da doença no país, já que locais para quarentena e tratamento de doentes estavam cheios.
"Era uma medida mais drástica, mas mostra a atenção de autoridades naquela época em relação a epidemias", explica o historiador Henrique Trindade, pesquisador do Museu da Imigração, em São Paulo.
A própria Hospedaria do Brás, onde hoje funciona o Museu, foi inaugurada devido a um surto de varíola em São Paulo, em 1887 — na ocasião, para proteger os novos imigrantes dos casos já registrados em outro alojamento, o do Bom Retiro.
O novo prédio, uma das maiores hospedarias da Américas, foi construído fora dos então limites da cidade, como uma forma de evitar o contato da população local com doenças que potencialmente poderiam ser trazidas de outras partes do mundo. E também o contrário, para preservar a força de trabalho saudável que chegava.
Mas essas não foram medidas pontuais na história do Brasil, como mostram o vasto registro em documentos históricos. Desde meados do século 19, com a intensificação do trânsito de pessoas pelo mundo, a preocupação com as fronteiras era uma prioridade.
Em 2020, com o início da pandemia de covid-19, o debate sobre medidas para proteger as "entradas" de países voltou ao radar.
Alguns, como a Coreia do Sul, conseguiram implementar medidas eficazes de rastreamento e controle em aeroportos, como quarentena obrigatória, aplicativo com monitoramento de passageiros e testes em massa nos terminais.
Outros, como o Brasil, não adotaram medidas semelhantes. Só em dezembro de 2020 (ou seja, nove meses após o início da pandemia) o governo passou exigir que passageiros vindos do exterior exibissem testes negativos para covid-19 nos aeroportos.
História da quarentena no Brasil
Ao menos desde 1810, ainda como colônia portuguesa, o Brasil se utilizava de quarentena nos portos e inspeção de navios como uma política pública para impedir a chegada de doenças ao território.
Havia ainda naquele tempo o tráfico de africanos, que forçadamente eram retirados da África para serem escravizados por aqui. Ao longo do século 19, essas medidas também se estenderam aos navios que de forma cada vez mais frequente traziam levas de imigrantes, principalmente da Europa.
Com esses novos trabalhadores, interessantes ao governo para "europeizar" o Brasil, a preocupação sanitária se intensificava.
"Por um lado, você tem a preocupação de evitar que quem chegasse pudesse trazer doenças. Por outro lado, você também tem, especialmente na corte, na cidade do Rio, a preocupação de que aqueles sujeitos saudáveis não fossem contaminados pelas epidemias daqui", relata o historiador Rui Fernandes, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e coordenador no Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores.
Em 1829, após a Independência, o país aprovou um regulamento para a inspeção de saúde pública nos portos, que tinha por atribuição verificar o estado sanitário das embarcações e decidir se estavam desimpedidas ou deveriam aguardar quarentena.
Navios que vinham de locais da Europa onde havia surtos de doenças como a cólera precisavam passar dias sendo inspecionados por médicos. No Rio, as embarcações deveriam ficar em ancoradouros como o de Jurujuba, em Niterói, onde também havia o Hospital Marítimo de Santa Isabel.
Em um relatório do Império de 1856, o ministro dos Negócios dizia que "estabelecimentos desta natureza são de indispensável necessidade em portos tão frequentados como este da capital".
Locais para quarentena de imigrantes
Também já havia a defesa de diminuir o uso de quarentenas como método e a necessidade de investimento em tecnologias de desinfecção e construção de lazaretos, locais para onde poderiam ser levados os doentes.
O principal lazareto, o da Ilha Grande, no Rio, ficaria pronto em 1886, logo após estourar uma epidemia de cólera na Europa.
Foi ali que ficou focado o serviço para quarentena de navios que vinham de portos como os de Triestre, na Itália, e Fiume, na atual Croácia, considerados locais de surto da epidemia, e até de Uruguai, Argentina e Chile, devido ao aparecimento da doença nos países vizinhos.
"Muitas vezes a própria tripulação já informava ao porto que aquele navio estava infectado. E aí nesse caso não era permitido que ele nem chegasse à Baía de Guanabara, ele já era levado lá pra Ilha Grande", explica Fernandes.
Com o telégrafo, os portos da América também ficavam sabendo rapidamente de epidemias.
Mas as quarentenas não ficaram restritas aos navios. As medidas também se estenderam às próprias hospedarias, como a do Brás, em São Paulo, e da Ilha das Flores, no Rio.
"Temos registros de quarentenas que geraram conflitos entre imigrantes e autoridades públicas. Eles chegavam obviamente angustiados, com medo, num país novo e, se tivessem algum tipo de doença, eram separados até de familiares", diz Trindade, do Museu da Imigração de São Paulo.
Na Ilha das Flores, hoje conectada ao continente na cidade de São Gonçalo (RJ), o local servia também para que imigrantes saudáveis não precisassem frequentar o centro do Rio, com condições sanitárias precárias, antes de seguir para lavouras e colônias no interior.
"Relatórios administrativos buscavam enfatizar que essa política sanitária era exitosa. Mas quando a gente cruza com alguns da imprensa do período, você identifica que nem sempre era exitoso", destaca Fernandes.
Desinfecção
Já no final do século 19, um relatório do governo paulista apontava que a cólera que devastou partes da Europa chegou ao Brasil, apesar das quarentenas. A "culpa" foi atribuída às bagagens.
Segundo explica Trindade, com base nos registros do Museu da Imigração, foi quando se intensificaram medidas de se desinfectar roupas e malas para combater essa e outras doenças. Também havia cada vez mais uma preocupação com as perdas econômicas causadas pelas quarentenas.
Na Hospedaria do Brás, o sistema de desinfecção de bagagens foi instalado em 1899.
Num surto de febre amarela no interior de São Paulo, também foram instaladas nas estações ferroviárias estufas e pulverizadores para desinfecção de bagagens e passageiros. Pessoas que embarcavam em cidades assoladas por algum surto eram colocadas em um vagão específico, já que não se sabia que a doença não era transmissível de pessoa pra pessoa.
Com avanço dos estudos bacteriológicos, surgiu o uso do aparelho de gás Clayton.
Em artigo na revista História, Ciências, Saúde, da Casa Oswaldo Cruz, a historiadora Fernanda Rebelo relata: "uso do gás sulfuroso seco, produzido sob pressão do aparelho de Clayton, nas condições em que foi empregado (grau de concentração de 8%), foi perfeitamente eficaz na desinfecção dos navios, para tornar inofensivos os objetos contaminados pelos micróbios da febre tifoide, da cólera e da peste".
"Além disso, o processo permitia destruir todos os ratos e insetos como pulgas, percevejos, baratas."
Com algumas dessas novas tecnologias, o governo começou a abolir as quarentenas de navios. Como mostram documentos da época, imigrantes desembarcados também passaram a gozar de liberdade de locomoção desde que indicassem a residência de destino, onde seriam visitados por funcionários da Inspetoria Geral de Saúde do Porto do Rio de Janeiro, durante o prazo de incubação da doença registradas nos navios.
Dentro do Brasil
As medidas para evitar o espalhamento de doenças também ocorriam dentro do Brasil.
Durante a epidemia de cólera que atingiu a parte paulista do Vale do Paraíba no final de 1894, registros em jornais da época mostram que o tráfego ferroviário entre os estados de São Paulo e Rio de Janeiro foi interrompido, para evitar a propagação da doença à então capital federal.
Empresários paulistas criticavam as medidas, que prejudicavam o comércio e a indústria. Por vezes, minimizavam a força da epidemia e faziam duras críticas à administração. A interrupção durou alguns meses, mas depois foi substituída por medidas como passaporte sanitário, desinfecção de passageiros e proibição de comércio de produtos como carne e leite.
Para o historiador Henrique Trindade, a política sanitária do período "contribuiu para que algumas epidemias do final do século 19, do começo do século 20, não fossem tão mortíferas quanto poderiam ser".
Mas também não impediu que doenças se alastrassem pelo Brasil, como a cólera, em 1899. O surto, porém, fez o país criar as suas duas mais importantes instituições de pesquisa em saúde: Fiocruz e Butantan.
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