Vice-presidente Hamilton MourãoReprodução/Twitter

O vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos) reagiu com ironia e risadas ao ser questionado sobre a possibilidade de se apurar os crimes ocorridos nos porões da ditadura militar, após a revelação feita pela jornalista Miriam Leitão, do jornal "O Globo", de áudios de sessões do Superior Tribunal Militar (STM) com relatos de tortura durante o regime.
"Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô. (sic) Vai trazer os caras do túmulo de volta?", declarou, rindo, o general da reserva na chegada ao Palácio do Planalto.

As mais de 10 mil horas de gravação analisadas pelo historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), relatam, por exemplo, a tortura de uma mulher grávida que sofreu aborto após ser submetida a choques elétricos pelos agentes da ditadura.

Na avaliação do vice-presidente, a tortura "é passado". "Isso é história, já passou. É a mesma coisa de voltar para a ditadura do Getúlio. São assuntos já escritos em livros, debatidos intensamente. É passado. Faz parte da história do País", avaliou Mourão.

Pré-candidato ao Senado pelo Rio Grande do Sul, o vice-presidente ainda disse nesta segunda-feira que a história da ditadura teria "dois lados", em linha com a bandeira de revisionismo histórico levantada pelo presidente Jair Bolsonaro. "A história sempre tem dois lados ao ser contada", afirmou. "Houve excessos: Houve excessos, de parte a parte. Não vamos esquecer o tenente Alberto, da PM de SP, morto a coronhadas pelo Lamarca e os facínoras dele", acrescentou o vice.
Material da ditadura militar
O material foi liberado através de uma determinação da Ministra Carmem Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF). O pedido do historiador foi encaminhado em 2006, mas apenas em 2018 Fico pode começar a analise que está agora na metade do processo. Os áudios são referentes ao período entre 1975 e 1979.
A Comissão Nacional da Verdade divulgou, em dezembro de 2014, um relatório em que cita 377 pessoas por crimes cometidos durante a ditadura, dentre eles, tortura e assassinatos. Além disso, a entidade também registrou 434 mortos e desaparecidos na ditadura; e 230 locais para onde os presos políticos eram levados.
Na época, o Clube Militar alegou que as informações eram uma "coleção" de "calúnias" e de "absurdo".
Em um dos áudios divulgados pelo Globo, o general Rodrigo Octávio afirma em 24 de junho de 1977, que um "fato mais grave" demanda apuração, durante o julgamento da Apelação 41.048 e descreve que o assunto a ser julgado seriam "acusações referentes a tortura e sevícias das mais requintadas" apresentadas por "alguns réus".
Dentre as acusações, descritas pelo general está o do marido de uma prisioneira, grávida de três meses, mantida no Doi-Codi, sofreu "choques elétricos em seu aparelho genital" que resultaram em um aborto. 
"É preciso que se evidencie de maneira clara e insofismável que o governo, através das Forças Armadas e dos órgãos de segurança, não pode responder pelo abuso e a ignorância e a maldade de irresponsáveis que usam torturas e sevícias para obtenção de pretensas provas comprometedoras na fase investigatória, pensando, em sua limitação cerebral, que estão bem servindo à estrutura política e jurídica regente, quando na realidade concorrem apenas na prática desumana, ilegal em denegrir a revolução retratando a sua configuração jurídica do Estado de Direito e abalando a confiança nacional pelo crime de terror e insegurança, criados na consecução honesta e urgente dos objetivos revolucionários", disse.
Sessões no tribunal
Em outro áudio, o ministro togado Waldemar Torres da Costa afirma, em 13 de outubro de 1976, durante o julgamento da Apelação 41.229: "Começo a pedir a atenção dos meus eminentes pares para as apurações que são realizadas por oficiais das Forças Armadas. Quando as torturas são alegadas e às vezes impossíveis de ser provadas, mas atribuídas a autoridades policiais, eu confesso que começo a acreditar nessas torturas porque já há precedente". 
Em 15 de junho de 1976, o ministro togado Amarílio Lopes Salgado disse, durante o julgamento da Apelação 41.027, que um homem suspeito de assaltar dois bancos estava preso quando houve durante o segundo outro assalto e ainda assim confessou o crime após receber "marteladas".

"É que ele [suspeito] alega que [...] esse [outro assalto] ele não podia [ter cometido] porque estava preso. 'Eu estou preso, estava preso na Ilha Grande'. Faz uma diligência e vem isso aí. Vou dar uma cópia para o procurador-geral porque esse moço apanhou um bocado, baixou hospital e citou o nome das duas pessoas que martelaram ele. [...] Eles podem negar, mas que os nomes dos dois estão aí, estão. É fulano e beltrano. Martelaram esse moço, daí a confissão dele. Em juízo, ele confessa que não podia: 'Eu estava lá na Ilha Grande', no dia 26. 'No dia 30, eu fugi e assaltei o banco tal no dia 31 e no dia 4 assaltei outro banco, mas no dia 26, não'. As declarações dele são longas, acho que no acórdão devia ser feito menção a isso."
Na sessão de julgamento da Apelação 41.648, em 15 de fevereiro de 1978, o Brigadeiro Faber Cintra afirma que lesões "seriam facilmente constatadas" por meio de exame de corpo e delito.

"As lesões sofridas, caso acontecessem, seriam facilmente constatadas através do exame de corpo e delito ou mesmo laudo médico particular, posto que nenhum dos acusados foi mantido preso por prazo superior ao previsto em lei. As alegações dos acusados em juízo, no sentido de que sofreram coações morais e físicas, não podem ser consideradas, pois desprovidas de qualquer elemento probatório por mais simplório que fosse um laudo médico particular que à época constatasse qualquer lesão, mesmo superficial do acusado"
Já em junho de 1978,  o general Augusto Fragoso diz que sentiu "grande constrangimento" durante o julgamento de apelação 41.593 ao saber de acusações que, para ele, "não foram apuradas devidamente".

"Eu, nesses 50 e tantos anos de serviço, vivendo crises militares de 30, 32 e 35, nunca vi, nunca ouvi, acusações desse jaez feitas a órgãos do Exército. Acho que nosso Exército, seguindo exemplo das forças irmãs, devia rapidamente se recolher aos afazeres profissionais", afirmou.
A coluna de Miriam Leitão também publicou o trecho de 20 de junho de 1977, em que o advogado Sobral Pinto afirma, durante o julgamento da Apelação 41.301, que há casos de tortura.

"Os senhores ministros não acreditam na tortura. É uma pena que não possam acompanhar os processos como um advogado da minha categoria acompanha para ver como essa tortura se realiza permanentemente. E nesse processo, senhores juízes, há prova documental da tortura que sofreu Marco Antonio. Há um laudo firmado por médicos militares atestando essa tortura. O ilustre eminente advogado de Marco Antonio, doutor Mario Simas, vai mostrar aos senhores ministros esse documento", afirma Sobral Pinto.