Ministra da Saúde, Nísia TrindadeFabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil
Comprova Explica: As secretarias de Atenção Primária e de Atenção Especializada do Ministério da Saúde publicaram em 28 de fevereiro uma nota técnica que propunha a anulação de outra nota, de 2022, da gestão de Jair Bolsonaro (PL), que estabelecia um limite de 21 semanas e 6 dias de gestação para casos de aborto legal. Esse período não era, porém, embasado por nenhuma decisão legal ou consenso científico.
A mesma orientação aparecia em um guia do MS para profissionais de saúde, Atenção Técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento, que trazia orientações para condutas nos casos de interrupção da gravidez.
O conteúdo da nota técnica do fim de fevereiro foi criticado e distorcido em publicações nas redes sociais, inclusive de deputados da oposição, como Nikolas Ferreira e Daniel Freitas, ambos do Partido Liberal (PL), que alegaram que o governo teria autorizado o aborto até o 9º mês de gravidez. Desde a publicação da lei que define quais são os casos legais de aborto, em 1940, não há nenhum limite de idade gestacional para o procedimento.
Além disso, as notas técnicas não têm força de lei. São documentos elaborados por especialistas dos ministérios, emitidos quando há necessidade de esclarecer algum assunto e que apenas oferecem fundamentação "para tomada de decisões". O documento foi revogado um dia depois da publicação, em 29 de fevereiro. Em nota para a imprensa, o ministério afirmou que ele não passou "por todas as esferas necessárias e nem pela consultoria jurídica da pasta".
Documento revogava orientação que já não tinha efeito desde o ano passado
Em outra manifestação do ministério, a Nota Técnica Conjunta nº 37/2023, publicada em setembro do mesmo ano, a pasta refuta os argumentos da gestão anterior ao apontar que o tempo gestacional e o peso do feto são elementos importantes em casos de aborto espontâneo, mas não são levados em consideração nos casos de aborto induzido, segundo definição da Organização Mundial da Saúde (OMS). "A definição legal de aborto é a interrupção da gravidez anterior ao tempo compreendido entre a concepção e o início do trabalho de parto, o qual é o marco do fim da vida intrauterina", aponta o texto.
Para os autores da nota publicada em setembro, a recomendação emitida durante a gestão de Jair Bolsonaro "intimida a população e os profissionais de saúde que atuam nos poucos serviços que acolhem as pessoas com direito ao aborto no Brasil". O texto ainda critica trecho do manual de 2022 que afirmava que "todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por risco materno". "Aborto legal não é crime e ameaçar meninas e mulheres com investigação policial é tortura do estado", afirma a nota nº 37/2023.
O Comprova entrou em contato com o Ministério da Saúde questionando o motivo de anular uma recomendação já suspensa, mas não obteve resposta até a conclusão desta verificação.
Nota técnica de 2022 embasou recusa de aborto legal
A criança descobriu a gravidez quando já estava na 22ª semana, ao ser encaminhada a um hospital universitário em Florianópolis. Os médicos se recusaram a fazer o procedimento citando a recomendação do Ministério da Saúde.
O caso foi à Justiça e, durante a audiência, a juíza Joana Ribeiro Zimmer tentou convencer a garota a manter a gestação "mais um pouquinho". Após repercussão do caso na imprensa, o Ministério Público Federal fez uma recomendação e a menina conseguiu interromper a gravidez. Em nota, o órgão reforçou que "é recomendado atender vítimas de estupro, independentemente da idade gestacional". O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) abriu uma investigação contra a juíza que tentou impedir o cumprimento da lei.
Quais são os casos legais de aborto no Brasil?
Tramita ainda no Supremo a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que discute a descriminalização do aborto nas primeiras 12 semanas da gestação. Antes de se aposentar, a ministra Rosa Weber votou para permitir a interrupção voluntária da gravidez nesse período, independentemente da circunstância, e argumentou que, embora não caiba ao STF elaborar políticas públicas – papel que seria dos poderes Executivo e Legislativo –, a criminalização do procedimento é um debate constitucional. O julgamento foi suspenso em setembro de 2023 e não há previsão de quando será pautado novamente.
Como verificamos: A nota anulada no final de fevereiro não está mais disponível no domínio do Ministério da Saúde, mas a reportagem conseguiu a íntegra com fontes da pasta. Já a nota técnica conjunta anterior, de 2022, está anexada à ação sobre a descriminalização do aborto que tramita no STF e pode ser consultada no site da Corte.
O manual de 2022 também não está mais disponível no site do ministério, mas foi possível obtê-lo ao buscar o endereço no Wayback Machine, que arquiva páginas da internet.
Por fim, para saber quais são os casos em que o aborto é legal no Brasil, a reportagem consultou o Código Penal e a decisão do STF de 2012 que permitiu a interrupção de gravidez de fetos anencéfalos.
Por que explicamos: O Comprova Explica busca esclarecer conteúdos em discussão nas redes sociais com potencial de gerar desinformação. A nota técnica anulada motivou publicações enganosas em perfis de grande engajamento, o que pode causar dúvida sobre quais são os casos em que o aborto é legal no Brasil e se o governo atual fez alguma mudança relacionada ao assunto. Não há nenhuma mudança nas hipóteses em que o aborto é descriminalizado desde 2012.
Outras checagens sobre o tema: Os boatos relacionados à suspensão da nota técnica do Ministério da Saúde já foram negados pelo Aos Fatos, g1 e Estadão Verifica. Em 2022, o Comprova também mostrou que era falso um panfleto dizendo que Lula liberaria o aborto.
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