Assim fomos alinhavando os laços que nos constituem, algo que os músicos de uma roda de samba fazem tão bem. Nesses espaços, cada profissional entende que o som do seu instrumento tem ainda mais valor em sintonia com os demaisArte: Kiko
Roda de amigas
É tão bonito que a gente esteja sempre recordando alguém e imaginando: "Que bom seria se essa pessoa estivesse aqui". Memórias boas são as relíquias de quem teve sorte na vida
Wanderley Monteiro entoava o refrão de 'Água de Chuva no Mar', composição dele com Carlos Caetano e Gerson Gomes, quando uma amiga da época do jardim da infância chegou à roda de Moacyr Luz e o Samba do Trabalhador, na Brava Arena Jockey. Poucos minutos antes, eu havia enviado para ela uma foto mostrando a minha localização, tendo o palco como referência. Assim, ao me avistar cantando "A gente se fala no olhar (no olhar)/ É água de chuva no mar (no mar)...", ela simplesmente me abraçou e seguiu entoando comigo aquela canção. E aquele foi o nosso cumprimento: um coro compartilhado de quem já dividiu muitas histórias nos últimos anos. Fiquei com aquela cena na cabeça, pensando em como um encontro assim tem tudo a ver com o astral de uma roda de samba. Não precisamos recorrer ao tradicional protocolo dos dois beijinhos e do "oi, tudo bem?". Simplesmente cantamos juntas, abraçadas, festejando a alegria de estarmos ali. Inclusive, nós duas vestíamos calça em diferentes tons de verde, a cor da sorte de quem tem amigos e pode ouvir Moacyr, seus músicos e clássicos do samba.
Aquela noite, aliás, foi toda de amizades reunidas. Pouco antes de o evento começar, uma amiga me avistou e também chegou me abraçando e falando: "Só assim para a gente se encontrar!". Vivemos naquele eterno "vamos marcar alguma coisa", deixando que a correria da vida adie momentos de celebração. Foi o jornalismo esportivo que nos uniu, há muitos anos, quando éramos concorrentes na cobertura de vôlei e entendemos que a vida não precisa ser uma disputa. Logo que nos vimos naquela noite de samba, tiramos uma foto juntas e enviamos para outra amiga em comum, por meio do WhatsApp. "Faltou ela!", pensamos. E é tão bonito que a gente esteja sempre recordando alguém e imaginando: "Que bom seria se essa pessoa estivesse aqui". Memórias boas são as relíquias de quem teve sorte na vida.
Ainda antes desses dois reencontros, revi uma jornalista que já foi minha chefe e a quem hoje posso chamar de amiga — suspeito que eu andei vestida de verde, a cor da sorte, na maior parte da minha vida. Logo recordamos que, quando comecei a cobrir futebol nos clubes do Rio, alguém sempre me perguntava se eu era parente dela. Eu amei, claro, e incorporei a lenda à minha história. Somos familiares e quem há de dizer que não? Lá no Jockey, lhe apresentei à minha irmã, que me acompanhava, e conheci seu irmão e sua cunhada. E assim fomos alinhavando os laços que nos constituem, algo que os músicos de uma roda de samba fazem tão bem. Nesses espaços, cada profissional entende que o som do seu instrumento tem ainda mais valor em sintonia com os demais. Há um tempo ensaiado para cada talento sobressair — seja o de Junior de Oliveira, Nilson Visual, Alexandre Marmita, Mingo Silva, Daniel Alves ou de Gabriel da Muda — e isso diz muito sobre uma vida boa.
Aliás, é sempre belo ver como Moa, como é carinhosamente chamado Moacyr Luz, valoriza não só os seus companheiros fixos, mas também convidados especiais. Naquela noite, além de Wanderley Monteiro, cantaram Toninho Geraes e Dudu Nobre. Ao som deles, também reverenciei outra amizade, essa formada há 19 anos, por meio de uma querida amiga de faculdade. Inclusive, fiquei feliz de ver que as minhas amigas já se conhecem entre si, entrelaçando assim cada pedacinho da minha existência.
Ainda naquele momento de cantoria e celebração, minha irmã ficou muito feliz de reencontrar uma colega dos seus tempos de faculdade na UFF, em Niterói. Deu para ver a magia daquele momento através do abraço e do sorriso delas. Juntas, elas voltaram no tempo contando que pegavam sempre a mesma carona para Caxias, na Baixada, após as aulas na faculdade. E aquela foi mais uma prova de que a caminhada sempre será feita de forma coletiva, por mais que a gente tenha um percurso particular.

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