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Sempre fui contrário ao foro por prerrogativa de função, uma previsão constitucional que entendo não ser republicana. Embora crítico, sou escravo da Constituição e, por advogar em Brasília, sede dos tribunais superiores, acabei sendo advogado de quatro presidentes da República, mais de 80 governadores e dezenas de ministros e senadores. Posso assegurar que, mesmo aos trancos e barrancos, o país avançou, especialmente nos mandatos do presidente Lula, que deu ampla e irrestrita autonomia e liberdade à Polícia Federal, que respeitou o Ministério Público e as instituições.
Basta dar um exemplo. Há algum tempo, antes do primeiro governo Lula, levei para depor, em uma investigação famosa, aquele que, à época, era o maior empresário brasileiro. Após o depoimento, perguntei ao delegado se ele iria relatar o inquérito, ou seja, se ele iria terminar a fase inquisitorial, já que o principal investigado acabara de ser ouvido. Ele foi peremptório: "Vou ouvir o governador amanhã e faço o relatório".
Entrei em contato com o príncipe dos advogados brasileiros, Márcio Thomaz Bastos, que era o advogado do governador da Bahia, terra onde se passava o imbróglio, e avisei que o cliente dele deveria ser ouvido no inquérito. Márcio, claro, comunicou a ele e, depois, me contou, perplexo, que o governador havia ligado para o ministro da Justiça à época e avisado: "Tem um delegado da PF aqui em Salvador querendo me ouvir! Ou
ele sai dos limites da Bahia em duas horas ou será preso pela minha polícia, algemado e levado pelas ruas do Pelourinho". Conta a lenda que o governador não foi ouvido e que o delegado foi promovido por não proceder a oitiva.
A verdade é que, anos depois, vivemos os excessos criminosos da operação Lava Jato. Com a vergonhosa instrumentalização do Judiciário e do Ministério Público, e com o apoio da grande mídia, ocorreu um crime contra o sistema de Justiça e contra a democracia. E essa maldita operação foi a gestora do governo fascista do ex-presidente Bolsonaro. Dentre as várias reflexões que merecem ser feitas, ao olhar para um passado que ainda está presente, uma merece ser novamente discutida.
Há anos escrevo sobre os poderes imperiais nas mãos do procurador-geral da República. Sendo ele o dominus litis, o único com autoridade para apresentar denúncia criminal contra o presidente da República, o detentor do cargo passa a ter mais poderes, nesse aspecto, do que os 11 ministros do Supremo. O Judiciário, felizmente, é um Poder inerte e só age se provocado. Se o chefe do Ministério Público simplesmente não oferecer uma denúncia ao Plenário do Supremo, mesmo em casos de crimes
comprovados, o presidente da República não será processado. Uma espécie de impunidade sem previsão legal. É necessário que o Congresso Nacional discuta e aprove uma solução para acabar com os poderes imperiais. A hipótese de uma queixa subsidiária poderia ser a solução.
Também é imprescindível uma discussão a respeito da escolha do procurador-geral da República e dos poderes a ele inerentes. É óbvio que é uma atribuição exclusiva do presidente da República. A tal lista tríplice deve ser solenemente desprezada. Nada mais é do que o fortalecimento do corporativismo e não tem previsão constitucional. Um diálogo com a participação dos setores que atuam no Judiciário pode oxigenar a escolha do chefe do Ministério Público. A Constituição de 1988 deu poderes gigantescos ao MP a ponto do ex-chefe do Ministério Público e ex-Presidente do Supremo, o inigualável Sepúlveda Pertence, parafraseando o General Golbery em uma frase sobre o SNI, ter vaticinado ao se referir aos abusos do MP: "Criamos um monstro".
Lembrando-nos de Confúcio, "Se queres prever o futuro, estuda o passado".