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Às vezes, a impressão que fica de certos absurdos é que, efetivamente, a sociedade carrega com ela um defeito de cor. Um racismo estruturado e invencível. Nesta semana, um senhor branco, de classe média alta, em Porto Alegre, sentiu-se ofendido porque um grupo de motoboys estava na rua conversando enquanto aguardava serviço. O agressor, homem branco e forte, achou-se no direito de, covardemente, esfaquear o
pescoço do jovem negro que estava trabalhando. Sem nenhuma discussão.
Golpeou-o porque pensou estar no direito de tentar matar o menino negro que ousava ser negro. E que ainda sorria. Não houve nenhum motivo para dar ensejo à violenta agressão. O homem branco deve ter cogitado: quem são esses negros para ficarem sorrindo e existindo aqui perto de um homem branco? A tentativa de assassinato à luz do dia e na frente de várias pessoas já demonstraria, por si só, um grave problema a ser entendido. Um crime, aparentemente, sem motivação. Sem subterfúgio. Sem álibi.
Sem sequer tentar esconder.
Mas tão estapafúrdia quanto a agressão gratuita foi a postura dos agentes da Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Seguindo a lógica preconceituosa, os policiais, no meio de várias testemunhas, não tiveram dúvidas e se envolveram na abordagem tentando imobilizar o negro. Parecia um show de horror. Imobilizaram e prenderam a vítima, negra, e a jogaram na parte de trás do camburão. Diante das pessoas incrédulas que
protestavam e gritavam que era um quadro de racismo. A vítima, esfaqueada, estava sendo capturada com violência; o autor da facada, rico e branco, pôde trocar de roupa, esconder a faca e sentar-se na parte da frente do carro de polícia. 
Dentro da gaiola do camburão, onde arremessaram o motoboy, não cabem muitos sonhos. É um lugar propício para alimentar ódios, frustrações, raivas e lágrimas de choro e de indignação. É um espaço conveniente para a sociedade racista, misógina e violenta dar um recado aos negros e pobres que se atrevem a querer ser iguais. Deixam claro que, mesmo vítimas, mesmo esfaqueadas e humilhadas, esse é o local reservado aos invisíveis sociais. Não se atrevam a sorrir, não conversem alto e não cometam a heresia de tentar ser feliz. O seu espaço de fala, “seu negro”, é a gaiola do camburão, de onde sua voz nunca será ouvida.
A inversão de valores é abissal. Uma agressão covarde merece o apoio de policiais que foram treinados a perseguir negros, a prender negros, a abordar negros nas ruas, a achincalhar negros nas blitzes e a humilhá-los. Hoje, outros são os ferros em brasa que marcam os homens e as mulheres de cor negra. O sinal que ainda usam para queimar a dignidade, a honra e a alegria. E o fazem à luz do dia, orgulhosos da própria imbecilidade.
Esse é o contorno exato de uma sociedade doente. Uma sociedade que exalta a tortura, que faz chacota das mulheres, que tenta ridicularizar os quilombolas e que inoculou o ódio e a violência nas pessoas. A ultradireita gostou de usar o chicote e o preconceito é a base de tantos abusos. Para combater tanta infâmia, a indignação é a nossa voz.
Vamos fazer eco com os que não se submetem a essa violência. Para cada agressão de um branco covarde, que seja acesa, em cada um de nós, a chama da imediata retorsão. Já passou muito da hora de simplesmente ouvir e ver a agressividade tomar as rédeas. Para cada gesto de dominação, que nosso grito seja de liberdade e de igualdade.
Remeto-me a Maya Angelou, no poema Ainda assim eu me levanto:
“Você pode me fuzilar com suas palavras,
Você pode me cortar com seus olhos,
Você pode me matar com seu ódio,
Mas ainda, como o ar, eu vou me levantar.”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay