Versão de arte para o OnlineARTE KIKO
“Inútil pedir perdão. Dizer que o traz no coração. O morto não ouve.”
Ferreira Gullar, O morto e o vivo.
Ferreira Gullar, O morto e o vivo.
Em um momento tão tumultuado do mundo, faltam palavras para definir o que vivemos. Tudo está muito estranho. Nos últimos tempos, nos acostumamos a nos acovardar para sobreviver. Com o massacre em Gaza, foi necessário criarmos maneiras pusilânimes de fingimento.
Enquanto um genocídio é televisionado ao vivo, no café da manhã, no almoço e no jantar, a gente segue levando uma vida “normal”. Assina uma nota em um grupo de humanistas, escreve um artigo indignado e participa de um debate sobre o massacre de milhares de crianças, mulheres, idosos e civis. Olha, já meio de soslaio, as imagens das casas e dos prédios em ruínas. Parecem um filme de tão cruel. Ruas inteiras nos lembrando Dresden na Segunda Guerra. Só que é tudo em tempo real. Enquanto tomo o meu café da manhã, a criança na televisão morreu de verdade. Durante a conversa em frente à televisão, a guerra continua e aquela criança chorando, desesperada de fome, tenta comer areia. A fome é real.
Fico imaginando que geração sairá desse desastre humanitário. Crianças sendo criadas com barulhos de bomba como pano de fundo. Como música para ninar. As crianças que sobreviverem em Gaza, certamente, terão o direito inalienável ao ódio e à vingança. O mundo nunca mais será o mesmo. Inclusive nós, no conforto da nossa distância física do genocídio, sentimos que um encanto se quebrou interiormente. Ter que nos brutalizar, dia após dia, faz de nós pessoas menos inteiras. Menos íntegras. Menos humanas.
Acompanhar alguns líderes fascistas brasileiros a aderirem e apoiarem o extermínio de um povo, como se fosse normal, por uma opção política, já demonstra o tamanho do fosso em que o país e o mundo estão metidos. No meio do caos, um grupo de “lideranças políticas” se anima a visitar Israel em um ato insano de apoio ao terror. Ou um gesto tresloucado de alguém que não percebe a dor dos outros. Alguém que não tem empatia e acha correto viajar de graça às custas da miséria alheia. Esses apoiadores da morte e da desgraça humana se somam à escória do mundo. Para se elegerem e continuarem a sina fascista, apoiam qualquer atrocidade.
E quando o massacre vai se tornando banal, com as pessoas já passando sem parar para prestar atenção, eis que a guerra aumenta sua capilaridade. Com tanto dinheiro e poder envolvidos, não seria possível deixar apenas aquela região escolhida a dedo. É necessário expandir a pressão. O ataque ao Irã escreveu um outro capítulo na carnificina.
Tenho certa pena do cidadão norte-americano. Com todo seu poder econômico e político, com toda a dominação, ele sabe que, um dia, será explodido e vingado. Seja num avião que cairá, seja em torres que explodirão à luz do dia, ou seja, em um festival em que se celebra a vida. A morte, a destruição e o horror estarão, permanentemente, à espreita. Mesmo aquele que abomina a política de ódio e de dor, sabe que está numa lista invisível e não escrita. Enquanto os donos do mundo estão manipulando as marionetes, a paz vai se tornando cada vez mais uma ilusão. O que era um sonho virou um pesadelo. E nós vamos nos acostumando a sermos banais.
Com a Copa do Mundo de Clubes fazendo um sucesso inimaginável e gigantesco, ocorre algo impensável. Os jogos são todos nos Estados Unidos. Eu tenho duas televisões na sala. Uma fica ligada na Copa e a outra na Guerra. E o mundo segue, impassível, sua trajetória de hipocrisia. Todos nós. Eu, inclusive.
Remeto-me ao piloto de caça alemão, Erich Hartmann, durante a Segunda Guerra, que participou de combates aéreos em 825 ocasiões, com 1.404 missões. Considerado o “ás dos ases”, conseguiu o recorde de 352 vitórias aéreas: “A guerra é um lugar onde jovens que não se conhecem e não se odeiam se matam entre si por decisão de velhos que se conhecem e se odeiam, mas não se matam.”
Hoje, os velhos também se matam.
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay
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