Gatinho Flow Divulgação

O novo sucesso das telonas, Flow, não conquistou apenas o coração do público com sua narrativa sensível e visual arrebatador — ele também provocou um inesperado e bem-vindo efeito colateral: o aumento na procura por adoção de gatos pretos. O protagonista felino do longa, um pequeno gato de pelagem escura e olhos expressivos, tem inspirado milhares de pessoas a procurar abrigos e ONGs de proteção animal em busca de um novo companheiro.

Porém, para além da comoção causada pelo filme, a movimentação em torno da adoção de gatos pretos trouxe à tona uma discussão antiga: o preconceito que esses animais ainda sofrem e os perigos que os cercam em datas marcadas por superstições, como a sexta-feira 13.

Gato preto nas telonas: o fenômeno de Flow

Lançado recentemente nos cinemas, Flow é uma animação poética e sem diálogos que conta a história de um gato preto que tenta sobreviver a uma grande enchente em um mundo pós-apocalíptico alagado. O filme, dirigido pelo húngaro Gints Zilbalodis, conquistou o público com sua estética contemplativa e trilha sonora imersiva.
A narrativa, conduzida apenas por imagens e sons, mergulha o espectador em temas como solidão, resiliência e conexão emocional, à medida que o felino enfrenta desafios para seguir adiante e aprende a conviver com outros animais durante a travessia. O protagonista — um gato preto expressivo e resiliente — tem sido a grande estrela da repercussão nas redes sociais, impulsionando uma onda de empatia e interesse por esses animais na vida real.

Historicamente associados a má sorte, bruxaria e outros estigmas culturais, os gatos pretos enfrentam resistência na hora da adoção. Muitos acabam esquecidos nos abrigos, mesmo sendo tão carinhosos, brincalhões e inteligentes quanto qualquer outro gato. “O preconceito com o gato preto é real. Há quem ainda acredite que ele traz azar ou que está ligado a práticas negativas”, afirma Rita De Cássia, protetora e fundadora do abrigo @gatorrosemapuros, uma ONG dedicada ao resgate e reabilitação de felinos em situação de risco.

Segundo Rita, o sucesso do filme tem sido uma bênção, mas também acende um alerta. “A gente fica feliz em ver os olhares se voltando para esses gatos tão injustiçados. Mas também precisamos ter muito cuidado. Já vimos esse filme antes: na pandemia, por exemplo, muitas pessoas adotaram animais por impulso, para não ficarem sozinhas. Quando tudo voltou ao normal, o número de abandonos aumentou assustadoramente”, lamenta.

Ela explica que, para evitar que situações como essa se repitam, o abrigo adotou um protocolo mais rigoroso de entrevistas com os interessados. “Agora, principalmente depois do lançamento de Flow, temos feito uma triagem criteriosa. Precisamos garantir que quem adota está consciente da responsabilidade de cuidar de uma vida, e que não está apenas sendo levado pela emoção do momento”.

Além disso, o abrigo suspende temporariamente as adoções de gatos pretos em datas como sexta-feira 13 e Halloween. O motivo é preocupante. “Infelizmente, ainda existem casos de pessoas que adotam gatos pretos nessas datas com intenções ligadas a rituais religiosos ou práticas esotéricas, que podem colocar a vida do animal em risco. Não estamos aqui para julgar nenhuma crença, mas sim para proteger esses animais”, destaca Rita. “Já tivemos casos em que gatos sumiram após a adoção, e nunca mais soubemos deles”.

A medida preventiva, embora pareça drástica, é amparada por denúncias e relatos de ONGs em todo o país, que apontam a vulnerabilidade dos animais pretos nessas ocasiões. Para os protetores, é fundamental reforçar a conscientização da população sobre os cuidados necessários na adoção de qualquer animal — e, sobretudo, desconstruir os mitos que cercam os gatos de pelagem escura.

Apesar de tudo isso, Rita se diz esperançosa. “O bom é que, com o Flow, estamos conseguindo mostrar um outro lado desses gatos. O filme apresenta o gato preto como sensível, companheiro, cheio de vida. É isso que eles são. E isso tem tocado as pessoas de verdade”.

Nas redes sociais, é possível ver um crescente número de postagens de adotantes felizes com seus novos companheiros de quatro patas. Muitos compartilham fotos e vídeos de gatos pretos, com legendas carinhosas e declarações de amor. A hashtag #MeuGatoPreto chegou a figurar entre as mais populares após a estreia do filme, demonstrando que a percepção sobre esses animais pode estar, finalmente, mudando.

Rita acredita que o momento é propício para reforçar a campanha pela adoção consciente. “O cinema tem esse poder transformador. Se a arte está despertando empatia, ótimo. Mas é nosso papel, como protetores, garantir que essa empatia se transforme em compromisso, em responsabilidade.”

O projeto @gatorrosemapuros atualmente abriga cerca de 40 gatos e aproximadamente 150 cães, sendo quase metade de cor preta. Todos eles estão disponíveis para adoção mediante entrevista, visita prévia e assinatura de termo de responsabilidade. “Não estamos aqui para dificultar a adoção, e sim para garantir que ela seja definitiva, e que o animal seja bem tratado e amado por toda a vida”, reforça Rita.

Com o impacto positivo do filme Flow, a expectativa é de que os estigmas caiam por terra e que, cada vez mais, os gatos pretos possam ser vistos com os olhos que realmente merecem: os de carinho, respeito e acolhimento.

“Eles são lindos, afetuosos e têm tanto amor para dar quanto qualquer outro animal. Só precisam de uma chance”, conclui Rita De Cássia, com a esperança de que o cinema tenha não apenas emocionado plateias, mas também mudado vidas.

Cuidados redobrados: o trabalho do projeto Anjos de Quatro Patas, em Niterói

O mesmo cuidado é compartilhado por Patrícia Marin e Bruna Aranha, protetoras e integrantes do projeto @anjos.de4patas, em Niterói. Atuando com cerca de 60 gatos resgatados — todos castrados e prontos para adoção, incluindo gatos pretos — o projeto adota uma postura firme em relação às datas de risco. “A gente fecha as portas em épocas como sexta-feira 13 ou Halloween. A procura aumenta muito, mas o risco também. Preservar a vida deles é mais importante do que promover adoções nesse período”, afirma Patrícia.

Ela conta que, em alguns momentos, chegou a sentir medo real de invasões nos locais onde os gatos ficam abrigados. “A gente escuta relatos de rituais, capturas. Eu não tenho nada contra a religião de ninguém, mas eu e minhas amigas trabalhamos para salvar a vida desses animais. E é isso que importa”.

Assim como Rita, Bruna e Patricia veem com bons olhos o impacto de Flow, mas alerta para o entusiasmo passageiro. “Fico feliz por ver um filme tão famoso e bonito dar uma nova cara para o gato preto, que sempre foi tão marginalizado. Espero, de verdade, que as pessoas adotem com amor no coração e com responsabilidade", acrescentou Bruna.

O projeto também é rigoroso na seleção dos adotantes. Após a aprovação da adoção, o próprio grupo realiza uma última etapa essencial: “Levamos o gato até a casa do novo tutor. Uma de nós vai junto para uma última conversa e para checar se está tudo certo. É assim com todos os gatos, pretos ou não”, garante.

Apesar de tudo isso, Patrícia, Bruna e Rita se dizem esperançosas. Ambas acreditam que o cinema pode ser uma poderosa ferramenta de transformação, e que o carinho despertado pelo gato preto de Flow pode ser o começo de uma nova era — uma era de mais respeito, amor e responsabilidade com todos os animais.