Viviane Gouvêa, cientista social e autora de "Extermínio ? Duzentos anos de um Estado Genocida"Divulgação

Cientista social, Viviane Gouvêa atua no setor de pesquisa e difusão de acervo do Arquivo Nacional. Aproveitando a experiência no manejo de documentos, durante a pandemia, dedicou-se à coleta de dados sobre a impunidade no país, o que resultou no livro "Extermínio – Duzentos anos de um Estado genocida", lançado no ano passado. Nele, a carioca denuncia o uso da violência como forma de opressão na Democracia. Em entrevista a O DIA, Gouvêa compartilha suas perspectivas sobre o tema. "A violência do poder púbico em tempos de democracia serve para mostrar que o próprio regime tem limites. [...] Esses excessos são uma forma de 'manter o povo no lugar".
O DIA: O que a senhora quer dizer com "Não dá para abrir as portas do inferno e escolher quais demônios vão sair"?
Viviane: A frase tem muito a ver com a forma como a violência é encarada, e algumas pessoas podem simplesmente morrer. Nesse jogo, as vidas são descartáveis, e a vítima costuma ser alguém socialmente excluído. Quando se permite que as forças de segurança usem a violência como dispositivo de controle, a coisa sai dos eixos e se rebela. Com isso, vemos mortes de membros do poder público que prejudicam o fluxo desse sistema. Piorando a situação, dados da Alerj dizem que 98% das mortes por violência policial não chegam a ser investigadas pelo Ministério Público. É como se o problema não existisse. Você abre as portas do inferno, achando que vai poder controlar a violência, mas ela afeta o próprio tecido político.
Como é o RJ em relação ao Brasil em termos de impunidade?
O estado se destaca: embora outros tenham polícias que proporcionalmente matam mais, aqui a letalidade é maior em termos absolutos. Apesar do RJ não ser um estado pobre — mas extremamente desigual — a falta de estratégia e motivação das corporações criou uma situação em que os agentes se sentem à vontade para agir da maneira como agem. Aqui, muitas vezes a polícia realiza operação em comunidades, porque há um pressuposto de ir ao local onde o bandido mora. Mesmo havendo um mapeamento de manchas criminais, revelando áreas com maior incidência de crimes, mostrando onde e quando acontecem roubos de carga e assaltos, por exemplo, ainda há pouco foco nessa abordagem.
De onde vem a violência do poder público contra o cidadão?
Acredito que, em tempos de democracia, o Estado usa esse recurso para mostrar que o próprio regime tem limites. E isso não se restringe ao RJ: ao longo da história, sempre que os limites foram ultrapassados, houve períodos ditatoriais, como a era Vargas e a Militar. Esses excessos são uma forma de "manter o povo no seu lugar". Para quebrarmos este ciclo, precisamos voltar a discutir os valores e a identidade do Brasil. Estamos nos digladiando já faz tempo. Precisamos reformar o acesso à Justiça, para ela funcionar para todos que precisam, e não só para quem paga advogado. Devemos ainda combater a violência policial, que perpetua a impunidade. E, por fim, é imprescindível introduzir nas escolas uma educação que promova o entendimento da cidadania, do processo político e jurídico, e que aborde assuntos econômicos e a importância de instituições como a defensoria pública, por exemplo.
Na Justiça brasileira, a lei é realmente para todos?
Duvido: dados produzidos pela Comissão Pastoral da Terra da Igreja Católica, em conjunto com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), revelam muitos assassinatos impunes no campo. E muitos desses conflitos envolvem a atuação da polícia, como no caso de Eldorado dos Carajás, onde dois batalhões se participaram do massacre, sem punição. É um problema sistemático: há evidências concretas que a população carcerária é composta majoritariamente por pobres, enquanto os ricos têm recursos para contratar advogados que encontram brechas na lei.
A violência perpetrada por agentes do Estado é mais grave do que violência privada?
O policial é agente da lei, e não pode quebrá-la. As pessoas contra o controle de armamento argumentam: "vocês não ligam que bandido mate os outros, só policial". Mas quando o agente, que deveria ser um símbolo de segurança para o povo, escolhe de que forma quer respeitar a lei, outra mensagem começa a ser passada.
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