Cenas do filme Simonal - Divulgação/Páprica Fotografia
Cenas do filme SimonalDivulgação/Páprica Fotografia
Por RICARDO SCHOTT
Rio - Fabrício Boliveira dá vida a um dos personagens mais misteriosos e complexos da sua vida em 'Simonal', que chega nesta quinta aos cinemas. O cantor Wilson Simonal (1938-2000) foi criado numa favela no Rio, passou por uma fase de enorme popularidade entre os anos 1960 e 1970 e depois desapareceu do mercado musical, após ser acusado de delatar colegas de esquerda.
Só há dez anos, quando começaram a sair livros e até um documentário sobre a história do cantor, alguns fatos foram devidamente esclarecidos. A produção dirigida por Leonardo Domingues leva para a tela grande os dilemas de Simonal, sua relação conturbada com a mulher Tereza (Isis Valverde) e sua ascensão ao sucesso, além de sua luta contra o racismo, expressada em entrevistas e em músicas como 'Tributo a Martin Luther King'.
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O DIA conversou com Fabrício a respeito do filme, do personagem e de sua construção - o baiano Boliveira estudou os gestos e o corpo de Simonal para poder levar para o filme um pouco da malandragem carioca dos anos 1960.
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Como vê a complexidade do personagem Simonal e como foi levar isso para as telas? Como encara o desafio pelo qual passou?
O filme fala de um mistério, né? O que aconteceu com Simonal, um grande artista brasileiro que foi apagado da história? Para mim, o grande desafio foi chegar à cabeça das pessoas. Ter toda a nitidez de poder mostrar o que era verdade e o que era fake news. O filme fala de coisas que se passaram na década de 1960 e 1970, mas que se reproduzem hoje em dia. É um filme superimportante para o Brasil, por essa possibilidade de rever a história.
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Qual traço psicológico do Simonal chamou mais a sua atenção?
Acho que é a "coisa" vibrante. Mesmo dentro de toda a loucura e de todo o caos, ele era um cara que conseguia traçar um caminho particular, frente às coisas que ele acreditava. E sempre com muita alegria, o estado de vibração importante para a manutenção da vida.
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Você já tinha ouvido muito a obra do Simonal?
Eu tinha ouvido superpouco. Conheci o Simonal quando eu fui trabalhar com Max de Castro no filme '400 contra 1', há dez anos, e o Max me apresentou a história do pai dele. Eu não conhecia. Então, a partir daí essa história ficou no meu imaginário.
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Qual sua música preferida dele?
Eu adoro 'É de Manhã', uma música do Caetano Veloso que o Simonal gravou. Gosto também do 'Tributo a Martin Luther King'.
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Como fez para resgatar um pouco da malandragem carioca dos anos 1960 no seu personagem? Houve algum tipo de trabalho ou pedido feito pelo diretor no filme?
Eu fiz um estudo em cima do corpo do Simonal. A gente entendeu o que era aquele 'suingue', naquele instante político, naquele país, representando o que é ser um homem negro nesse país. E tem a interseção sobre coisas que eu carrego no meu corpo, e que todo mundo também conhece como 'suingue', e que eu acho que é uma interseção com Simonal. Então, de algum jeito, não é uma cópia. Fui encontrar dentro de mim o que tinha desse 'suingue' dos anos 1960 e 1970. E para isso, eu fui estudar um pouquinho essa "forma 1970". Ela vem do Simonal, evidentemente. Mas encontrando conexão do Simonal com meu corpo.
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Simonal era "pavão" assumido, adorava aparecer, e o que mais tem são imagens dele. Isso te ajudou? Você viu quantos vídeos dele?
Eu vi um filme dele, que foi super importante, é um filme que Domingos de Oliveira fez, o 'É Simonal'. É uma tentativa do Domingos de criar um mito, ou talvez fazer uma crítica sobre o lugar de uma estrela. Na história real, o Simonal briga com Domingos, porque ele percebe que o Domingos está tentando colocar ele como um pavão. Eu quis me distanciar de materiais que existem na internet. O filme é a minha leitura dessa história. Eu quis fazer novos shows, novos números musicais, nova relação com o público. Mas, claro, tudo baseado na história dele, mas uma relação do presente.
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Como vê a pecha de "dedo duro" associada a ele, e o fato de ele ter sido responsável indireto pela tortura a um ex-funcionário? Incomodou você ter que lidar com um personagem que acabou associado à tortura, ainda que ele não tenha mandado torturar ninguém?
As contradições da história do Simonal o elevam para o lugar simples de humano. Lidar com essas contradições do humano é poder respeitar as individualidades e as construções. Claro, vendo os erros e os acertos. Mas tratei essa história com compaixão, que é uma coisa que eu faço muito como ator. É mais do que levantar um discurso sobre levantar as questões, né?
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E sobre o fato de ele ter sido enganosamente tratado como delator: a grande importância do filme é mostrar com nitidez essa história. Mostrar que ele não delatou nenhum amigo artista, como ele mesmo tentou várias vezes comprovar isso em programas de televisão. Ele foi no programa da Hebe, no programa Silvio Santos, com uma carta, um documento que comprovava que ele não tinha feito nenhuma denúncia. O fato de ter mandado dar uma prensa no contador, e ele ter sido torturado, é uma questão judicial que ele tratou na época também. Acho que deve ser uma coisa que a família deve levar junto também, né?
É a segunda vez que você faz par com a Isis Valverde num filme (antes, eles haviam sido um casal em 'Faroeste Caboclo'). Como avalia o trabalho dela no filme?
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Ela está maravilhosa! Fez um trabalho superdifícil. Uma mulher livre e independente como ela nos dias de hoje, tendo que interpretar uma mulher típica das décadas de 1960 e 1970, mostrando como elas eram tratadas... Ela me dizia sempre que, ao fazer a personagem, tinha uma sensação de maçã entalada na garganta. Acho que essa imagem fala muito da dificuldade dela e do grande acerto que ela fez nesse filme.
Teve contato com os filhos do Simonal durante a preparação do filme?
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Bastante! O Max e o Simoninha fazem trilha do filme. O Max já era meu amigo, e o Simoninha se tornou meu amigo. Estavam presentes sempre! Nos números musicais e nas cenas mais importantes. Foram um grande baú de pesquisa sobre a história do pai e sobre história da família.
Como vê o pioneirismo do Simonal na luta racial, aqui no Brasil?
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O Simonal talvez não tenha sido um pioneiro na luta racial no Brasil. Mas, talvez no lugar onde ele ocupou, sim. É muito triste falar disso, porque pensar que um homem negro e rico nesse país com poder de escolha, o poder de consumo e com poder de afirmação social que ele tinha... Nenhum outro cantor ou nenhum outro artista negro nesse país chegou a esse lugar que ele chegou. Claro que ele tem discursos sobre isso! A representação dele como um homem negro ocupando aquele lugar já é de uma referência enorme! Uma pena que isso tenha ficado preso no tempo.